Nos 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão: a embaixada Tensho e o seu relato na obra da Biblioteca da Ajuda, "De missione legatorum... "

O desembarque, na ilha de Tanegashima, dos navegadores portugueses António Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto, em 1543, marca o primeiro encontro entre Portugal e o Japão. Até essa data, este país do Extremo Oriente só era conhecido na Europa pelos escritos de Marco Polo (1298-1299), o qual, apesar de não ter ido além da China, refere diversas vezes a ilha de Cipango. Mas os seus relatos, contudo, não foram considerados totalmente credíveis, sendo mesmo, por vezes, considerados como invenções.
A missionação católica, iniciada com S. Francisco Xavier a partir de 1549, permitiu um melhor conhecimento destas paragens pelos europeus, através da epistolografia jesuíta. A carta com as primeiras impressões deste missionário sobre o arquipélago e os seus habitantes, escrita em Kagoshima, em novembro de 1549, conheceu uma enorme difusão na Europa, sendo editada em Coimbra, logo em 1551, e em Roma e Veneza, no ano seguinte. Esta relata que: "este povo é a delícia do meu coração [e é] gente de mui boa conversação, geralmente boa, e não maliciosa [...], de muitas cortesias uns com outros. É gente que não sofre injúrias nenhumas, nem palavras ditas com desprezo […] de muito juízo e curiosa de saber, asi nas cousas de Deus, como nas outras cousas da ciência"[1].
Era através dos jesuítas que a Europa do Renascimento e da Reforma descobria um Japão longínquo e exótico e, simultaneamente os japoneses contactavam com um mundo para além do arquipélago.
O projecto de inculturação do Cristianismo no Japão, levado a cabo pelos jesuítas, foi sustentado na estratégia de evangelização focada na aristocracia militar, aproveitando a capacidade de persuasão dos guerreiros junto dos respetivos vassalos, mas também na abertura do sacerdócio aos novos cristãos nativos, introduzida pelo P. Alessandro Valignano. A marca distintiva deste projecto foi a aproximação dos missionários ao mundo japonês, como estratégia de conversão.
Esta vontade de dar a conhecer aos europeus a missão japonesa e, simultaneamente, permitir aos japoneses o conhecimento da Europa esteve na génese da embaixada Tensho, organizada por Valignano, já nos finais do século XVI, altura em que Portugal perdera a independência após uma crise dinástica.
A referida comitiva era composta por quatro dáimios, dois deles alunos do seminário jesuíta de Arima, que pertenciam à alta nobreza japonesa. Foram acompanhados pelo P. Diogo de Mesquita que serviu de guia e de intérprete ao longo da viagem pela Europa.


Retrato da Missão Tensho na Europa, In: "Newe Zeyttung auss der Insel ]aponien" [Notícias da Ilha do Japão] Kyoto UniversityRare Materials Digital Archive

Gravura feita em Augsburg em 1586 retratando os dois jovens "embaixadores" japoneses (em cima) com seus dois assistentes (em baixo) e o jesuíta que os acompanhava (em cima no centro)



A viagem, cujo destino final era Roma a fim de serem recebidos pelo Papa Gregório XIII, demorou cerca de oito anos: o navio zarpou do Japão em 1582 e só regressou em 1590, passando por Portugal, Espanha e o norte de Itália. Dessa forma, Valignano mostrava à Santa Sé um cristianismo japonês, enquadrado perfeitamente na evangelização jesuíta.
Desta viagem resultou um relato escrito em forma de diálogo entre os jovens embaixadores recém-regressados da Curia Romana e os seus familiares e amigos que haviam ficado no Japão, através do qual os primeiros vão contando todas as novidades que haviam assistido na Europa. Escrita em latim, esta obra, da qual a Biblioteca da Ajuda possui um exemplar (B.A. 50-X-20), foi a primeira grande obra impressa em Macau, em 1590, na prensa trazida por Valignano, sob o título «De missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq; in Europa, ac toto itinere animaduersis dialogus […]»[2].
 

SANDE, Duarte de                                        
De missione legatorum Japonensium ad Romanam curiam rebusque in Europa ac toto itinere animadversas dialogus / ab Eduardo de SandeIn Macaensi portu sinici regni in domo Societatis Jesu (...), anno 1590. - 4.°.  — Pert.: Col. Nobres. — A.711

50-x-20 e 50-x-20A (fac simile)



Relativamente à sua autoria, as opiniões dividem-se, pois se para alguns, como Moran (2001)[3], Valignano teria escrito a obra em castelhano, sendo posteriormente traduzida para latim por Duarte de Sande, outros autores, nomeadamente Costa Ramalho[4], atribuem ao próprio Duarte de Sande a autoria da obra, que teria vertido para latim os relatos em japonês dos jovens dáimios.
Independentemente da sua autoria, esta obra reveste-se de especial importância por atestar a forma como os japoneses se interessaram e assimilaram a cultura europeia, designadamente a música.
Quando perguntam a um dos jovens dáimios como tinham passado a longa viagem por mar este responde que “muitas coisas há com que os navegantes podem entreter-se, para sofrerem com menor má disposição a longa passagem do tempo. Foi o que principalmente nos aconteceu: ora estudávamos a língua latina, ora tocávamos instrumentos musicais […] sem nos esquecermos das costumadas orações a Deus e aos santos. (De Missione…T.1, p. 128)
E sobre os instrumentos musicais dos europeus, revela que existem “Muitos e extremamente agradáveis, como por exemplo saltérios, harpas, liras, cítaras, para não falar de outros que pertencem à plebe e se tocam soprando, como flautas, sambucas, gaitas-de-beiços, trombetas e outros do mesmo género que fazem parte da orquestra e que todos eles tocados ou soprados com arte produzem uma suavíssima harmonia.” E ainda que o “canto europeu é composto de uma arte requintada. Nele, com efeito, ao contrário do que acontece com o nosso, não se conserva perpetuamente o mesmo tom de todas as vozes, mas uns tons são agudos, outros graves, outros intermédios, os quais, emitidos ao mesmo tempo artisticamente, produzem uma admirável harmonia. […] Entre nós, porém, porque no canto não há nenhuma diversidade de tons, mas um só e mesmo modo de emitir a voz, não existe até agora nenhuma arte e nenhum método em que estejam contidos os preceitos da sinfonia, ao passo que os europeus, graças à múltipla variedade dos sons, ao hábil fabrico de instrumentos e à multidão admirável de livros musicais e de figuras, ilustraram com grande relevo esta arte. (De Missione…T. 1, p. 230-231).






De Missione…, p. 230-231





Este fascínio pela polifonia por parte dos japoneses, que contrastava com o canto monódico comum no Japão da época, verificou-se quando, em Setembro de 1584, o arcebispo D. Teotónio de Bragança mostrou aos embaixadores o órgão do coro da Sé de Évora, que terá os maravilhado não só pelo seu enorme tamanho, mas também porque “tocando em hũa tecla moviãose tres ordens de teclas, que são três maneiras de órgãos, e fazem hũa sonora armonia”[5].

Construído pelo famoso organeiro Heitor Lobo, que esteve ao serviço da Sé de Évora entre 1544 e 1553, o órgão da Sé de Évora encontra-se instalado na sua tribuna, junto ao coro alto. É considerado o único instrumento deste período que chegou aos nossos dias, embora com extensas modificações que alteraram a sua configuração original[6]. Apesar das alterações que foi sofrendo ao longo dos tempos, parte dos tubos originais foi conservada, mantendo, assim, a sua sonoridade original, sem alterações significativas.



Órgão quinhentista da Sé de Évora

Fotografia de Francisco Bilou





Évora e os seus órgão de tubos [aqui]




Pode ouvir a sonoridade do órgão, que os embaixadores japoneses terão ouvido há 440 anos e que tanto os maravilhou, neste link: https://www.youtube.com/­watch?v=ZFVs6ZU0vtw.
Após o seu regresso ao Japão, a embaixada foi recebida, em 1591, em Quioto, juntamente com Valignano, por Hideyoshi, que sucedera a Nobunaga na política de unificação do Japão e que havia publicado em Julho de 1587 um édito anti-cristão, no qual se ordenava a expulsão dos padres e a proibição do culto.
Na ocasião os jovens cantaram e tocaram instrumentos musicais aprendidos na Europa, e explicaram ao senhor do recém-unificado Japão tudo o que tinham visto na sua viagem. Hideyoshi mostrou-se muito interessado nos relatos e, de acordo com Luís Fróis[7], pediu por várias vezes que continuassem a tocar. Depois, pegando nos instrumentos sobre os quais fez diversas perguntas, pediu que tocassem novamente.
O sucesso da embaixada Tensho não impediu, no entanto, todos os acontecimentos que se seguiram, que culminaram com a expulsão dos portugueses do Japão, apesar da cultura e da música europeias continuarem a fascinar os japoneses.

MJA (BA)

[1]Cartas que os padres e irmãos da companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Iapão & China aos da mesma Companhia da India, & Europa desdo anno de 1549. Até o de 1580 / impressas por mandado do Reverendissimo em Christo Padre Dom Theotonio de Bragança, Arcebispo d' Evora [...]. Em Evora : por Manoel de Lyra, 1598. Tomo 1. BA. 50-XIII-20, [exemplar da BNP aqui]
[2] De Missione Legatorum Iaponensium Ad Romanam Curiam Rebusq In Europa Ac Toto Itinere Animaduersis Dialogus [...] / Ab Eduardo De Sande [...].In Macaensi portu : in domo Societatis Iesu, 1590. [exemplar da BNP aqui]
[3] Moran, J.F. - The real author of de missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam..dialogus. Bulletin of Portuguese - Japanese Studies. N. 2 (june, 2001), pp. 7 – 21.
[4] Ramalho, A.C. - O Padre Duarte de Sande, S. I., verdadeiro autor do De Missione Legatorum Iaponensium ad Romanam Curiam … Dialogus. Revista de Cultura. 2ª série (1997), pp. 43-51.
[5] Fróis, Luís - Tratado dos embaixadores japões que forão de Japão a Roma no ano de 1582, [17--], p. 43
[6] João, PAIVA, Rui, d´ALMEIDA, Emanuel Santos - Portugaliae Monumenta Organica : Órgãos de Portugal. Lisboa: PolyGram/Selecções do Reader´s Digest, 1992.
[7] Fróis, Luís - História do Japam, anot. José Wicki. Lisboa : Biblioteca Nacional, 1984. Vol. 5

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