Terceiro acto da ópera Ezio de David Perez, conservado na Biblioteca da Ajuda (B.A. 47-V-61) identificado pela investigadora Cristina Fernandes

Davide ou David Perez (Nápoles1711 - Lisboa30 de outubro de 1778) foi um compositor italiano, que veio para Portugal, a convite do Rei D. José, em 1752, para ocupar o lugar de compositor da Real Câmara e mestre das princesas reais, onde viria a permanecer até à sua morte em 1778.

Durante os 26 anos que esteve ao serviço do monarca português foi a figura central da vida musical da corte e exerceu uma grande influência nos compositores portugueses, entre os quais se destacam João Cordeiro da Silva, João de Sousa Carvalho, Luciano Xavier dos Santos e José Joaquim dos Santos.

Perez compôs mais de 38 obras dramáticas entre 1735 e 1777, tendo 14 destas sido compostas durante a sua estadia em Portugal. É o caso da nova versão da ópera Alessandro nell'Indie, escrita para inauguração da Ópera do Tejo, em 1755, cuja partitura autógrafa se conserva na Biblioteca da Ajuda (B.A. 54-I-83 a 85). No entanto, a sua produção operística diminuiu significativamente após o terramoto de 1755, devido às restrições económicas que se impuseram, passando a compor essencialmente música sacra.

O seu reconhecimento ultrapassou as fronteiras de Portugal, sendo a música de Perez tocada frequentemente em Londres e algumas das árias das suas óperas impressas pelo editor inglês John Walsh. Em Londres foi também publicada a sua principal obra de música religiosa, também composta em Lisboa: o Mattutini de’ Morti , editado por Robert Bremner em 1774.

Não se sabe ao certo se a ópera Ezio, representada pela primeira vez no Teatro Regio Ducal de Milão em 1751, conheceu alguma produção portuguesa. Apesar de Joaquim José Marques (1947)[1] referir uma representação da obra no teatro de Salvaterra em 1756, Manuel Carlos de Brito considera esta referência duvidosa, pois nesse ano a família real não se deslocou a este Palácio Real (1989)[2].

A Biblioteca da Ajuda conserva um conjunto muito rico de óperas setecentistas que reúne as partituras colecionadas pelos monarcas, geralmente encomendadas através dos embaixadores que se encontravam nas cidades europeias onde estas grandes óperas se representavam. De igual modo, integra no seu acervo partituras provenientes dos teatros reais da Ajuda, Queluz e Salvaterra, encerrados em 1792[3].

Nesta coleção de música, encontra-se um conjunto significativo de obras dramáticas e religiosas de David Perez, contando-se cerca de 25 partituras de óperas que se representaram em Portugal, bem como alguns exemplares de óperas deste compositor que não foram levadas à cena em teatros portugueses, de entre os quais se inclui um volume, até hoje catalogado como anónimo, que, graças à investigação de Cristina Fernandes, ficámos a saber se trata do 3.º acto da ópera Ezio (fig. 1).








Fig. 1 [Ezio] : Atto Terzo [de David Perez. 1751]. (B.A. 47-V-61)


Deste modo, o volume agora identificado poderá ser uma partitura usada para uma possível representação no Teatro de Salvaterra, que foi conservada na Biblioteca da Ajuda, após o encerramento deste teatro em 1792, ou pertence ao conjunto de óperas de Perez conservadas na Real Biblioteca, fruto do colecionismo informado dos monarcas.

Cristina Fernandes, investigadora do INET-md, NOVA FCSH, apresenta-nos o resultado da sua profunda pesquisa num artigo recentemente publicado na Revista Berceo[4], através do qual percebemos que a fonte principal para esta descoberta foi uma antologia de árias da ópera Ezio de David Perez conservada no Arquivo da Catedral de Calahorra, que é o documento mais completo que nos permite conhecer a música desta ópera, já que não se conhece a partitura original estreada em Milão, em 1751. Existem igualmente algumas árias impressas por John Walsh, referentes à representação que se fez em Londres na temporada 1754-55, e outras que estão descritas no catálogo RISM. Mas foi da comparação com o libreto e os incipits musicais das árias da antologia conservada na Catedral de Calahorra, que a investigadora pôde verificar que o volume da Biblioteca da Ajuda, até hoje indicado como obra anónima, corresponde ao terceiro acto desta composição.

O volume da Biblioteca da Ajuda não contém as três primeiras árias do libreto original, mas as restantes estão presentes, incluindo os respectivos recitativos. Por outro lado, a instrumentação da antologia de Calahorra limita-se às cordas, enquanto a do manuscrito da Ajuda inclui trompas e oboés. Outra particularidade deste documento, evidenciado por Cristina Fernandes, refere-se o facto de este apresentar várias mãos na escrita musical, mas que nenhuma destas grafias corresponde aos copistas da corte de Lisboa da época.

O exemplar em análise consiste na compilação de diversos cadernos de papel de origens diferentes, utilizando tintas diversas conforme a mão que os copiou e apresenta-se brochado com pastas em cartão forradas a papel marmoreado de fabrico italiano da primeira metade do século XVIII. A pasta anterior e alguns fólios revelam algumas manchas de queimado e a lombada encontra-se coberta por uma folha de papel pardo, provavelmente numa tentativa de recuperar a lombada original em pele que estaria em mau estado. Algumas árias apresentam rasuras, emendas e cancelamentos.

Curiosamente, apesar de este volume figurar como obra anónima no Catálogo de Música Manuscrita da Biblioteca da Ajuda[5], Fernandes, na sua análise, identifica na ária “Ah non son io che parlo” (f. 44) a indicação da autoria de David Perez e a referência ao nome da soprano que participou na estreia de Milão, “Sig.ra Aschieri” (fig. 2).






Fig. 2 - Ária “Ah non son io che parlo” da ópera Ezio de David Perez [1751] (B.A. 47-V-61, f. 44)


Embora se trate de uma obra incompleta, pois apenas se identificou o 3.º acto, esta investigação de Cristina Fernandes é muito importante para um melhor conhecimento deste conjunto documental tão rico para o estudo dos repertórios setecentistas, que é a Coleção de Música da Biblioteca da Ajuda, com ainda tanta informação por desvendar.



 

  


Fig. 3: Ezio [libreto] : Dramma per Musica da rappresentarsi nel Regio-Ducal Teatro di Milano. In Milano :  Giuseppe Richino Malatesta, 1751

Versão on-line [aqui]







Fig. 4:  Pasta anterior da partitura de [Ezio] : Atto Terzo [de David Perez. 1751]. (B.A. 47-V-61)



MJA(BA)



[1] Marques, Joaquim José (1947) Cronologia da ópera em Portugal. Lisboa : A Artística.

[2] Brito, Manuel Carlos (1989) Opera in Portugal in the Eighteenth Century. Cambridge : University Press

[3] Os Teatros reais foram encerrados em 1792 depois de um episódio de demência da rainha D. Maria I, quando esta assistia a uma representação no Teatro de Salvaterra (BRITO, 1989).

[4] Fernandes, Cristina (2022) De los Escenarios Europeos a las Iglesias Ibéricas : Una Fuente para la Ópera Ezio de David Perez en el Archivo de la Catedral de Calahorra. Berceo : revista riojana de ciencias sociales y humanidades. ISSN: 0210-8550. N. 183 (2.º Sem., 2022), pp. 37-54. Disponível em linha [aqui

[5] Santos, Mariana A.M. (1959) Catálogo de Música Manuscrita. Lisboa : Biblioteca da Ajuda. Vol. 2, p. 46, n. cat. 779

A Suprema Ordem do Crisântemo: uma insígnia do Japão em 20 de Abril de 1883

Faz parte da coleção de manuscritos avulsos da BA um documento em japonês, BA 54-XI-13, nº 17, com tradução em francês, que é paralelo de um objecto do acervo do Palácio Nacional da Ajuda, o Grande Cordão da Suprema Ordem do Crisântemo.

O Grande Cordão da Suprema Ordem do Crisântemo ( (大勲位菊花章, Dai-kun'i kikka-shō), insígnia criada pelo Imperador Mutsu-hito em 1876, é a mais alta distinção do Japão, mantendo apenas uma classe e podendo ser atribuída também a título póstumo. Apesar de existir apenas uma classe, a insígnia pode ser constituída pelo Grande Cordão ou pelo Grande Colar, o qual só apareceu em 1888 e que é exclusivo, em vida, do Imperador. Como se depreende da data - é uma honra militar recente - a sua atribuição a D. Luís I foi uma das primeiras efetuadas pelo Imperador Mutsuhito a "cabeças coroadas" europeias. Atribuída pelo Imperador, ouvido o governo, é a mais alta condecoração japonesa, honrando japoneses por serviços excecionais ao Japão e atribuída a pessoas reais estrangeiras como afirmação de amizade.


                                              

Constituída por uma faixa vermelha debruada a azul, usada sobre o ombro direito, tem pendente 1 distintivo esmaltado em forma de estrela de 4 pontas com raios brancos sobre o verde das folhas dos crisântemos que, esmaltados a amarelo, repousam entre as 4 pontas. Este mesmo crisântemo florescente amarelo esmaltado suspende o distintivo do Grande Cordão. No centro do distintivo um sol nascente. A estrela, usada ao peito à esquerda, é idêntica ao distintivo exceto na suspensão e no material de fabrico: a prata. Ao centro um medalhão dourado de 8 pontas, esmaltado com raios brancos e um sol central a vermelho.







O crisântemo é a flor nacional do Japão e a sua associação ao Imperador e Casa Imperial japonesa deriva das características que lhe são adstritas simbolicamente. Originário da China é usado como selo imperial do Japão desde o séc. VIII e como símbolo imperial exclusivo a partir do séc. XIX, fixando-se na representação da flor amarela ou laranja com 16 pétalas em cada uma das 2 camadas. Todos os outros familiares da Casa Imperial usam variações simplificadas deste. As qualidades que se lhe associam são, simultaneamente, as do próprio Imperador: Poder, Longevidade, Equilíbrio e Felicidade. A sua forma e cor evocam o sol e é a flor-sol – ou flor dourada, como é designada em chinês – que melhor exprime o seu imenso potencial simbólico no Japão.

Esta honra foi correspondida por D. Luís, ao agraciar o embaixador da legação japonesa que se despedia nessa altura (finais de Abril de 1883), com a Ordem Militar de N.ª Sr.ª da Conceição de Vila Viçosa, em 15 de Maio de 1883 e conforme nos atesta o Diario Illustrado, 16 de Maio de 1883, ano 12, nº. 3.600.







"Com a grã-cruz de Nossa Senhora da Conceição de Villa Viçosa, general Ida, ministro de sua magestade o Imperador do Japão em Lisboa"

Diario Illustrado, 16 de Maio de 1883 [mais aqui]
Todos os membros reais após D. Luís I – D. Carlos, D. Luís Filipe, D. Manuel II - foram agraciados com a Suprema Ordem do Crisântemo confirmando assim os laços de amizade que unem os 2 países, com pequenas interrupções, há 480 anos.

Há a destacar ainda as fórmulas protocolares e uso do francês, como língua pan-europeia, que fazem  deste documento e da sua tradução também um testemunho físico das histórias das relações internacionais. A utilização da expressão "mon frère" com que se dirige a D. Luís, enfatiza os laços de amizade que ligam os dois países/monarcas e de que a insígnia enviada é expressão máxima.

MFG (BA)

1883: Registo de acreditação do novo Embaixador Japonês

Aos 15 dias do 3º mês do 16º ano da era Meiji (1883), o Imperador do Japão, Mutsuhito, assina na sua residência imperial de Tóquio a carta de acreditação de um novo representante diplomático junto de D. Luís I de Portugal. E assim se renovou a aproximação entre duas nações que dificilmente estariam mais afastadas geograficamente.

                                                            
D. Luís I /Augusto Bobone /PNA [aqui]                            Imperador Mutshuhito / BNP [aqui
                                                                                           

Hachisuka Mochiaki , (Marquês Hachisuka Mochiaki (蜂須賀 茂韶, 28 Set. 1846 – 10 Fev. 1918) o novo Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Japão, é recomendado pela sua "lealdade e os seus talentos" para este cargo junto do soberano português, em que deveria estender a longa e pacífica amizade entre o Japão e Portugal. Homem educado durante a mudança reformista e modernizadora Meiji, assistiu ao fim do sistema feudal dos shogunatos e ao desenvolvimento de uma nova potência industrial que se abriu ao mundo ocidental e ao seu progresso. Educado em Inglaterra, em Oxford, seguiu uma carreira político-administrativa após regressar ao Japão que incluiu, em 1882, um lugar diplomático em França, seguido do governo de Tóquio e várias posições políticas de relevo que lhe granjearam o título nobiliárquico de marquês em 1884.


  54-XI-13, n.º 18





  54-XI-13, n.º 18

A carta de acreditação, verdadeira credencial no sentido que certifica as qualidades e títulos do novo representante do Imperador do Japão, é também curiosa aos nossos olhos ocidentais e contemporâneos:

1. A garantia da legitimidade da pessoa imperial é dada pela recondução ao início da dinastia imperial japonesa, "depuis le temps plus reculées", isto é, ao 1º Imperador Jimmu (660 a.C.) personagem cuja vida histórica é quase desconhecida e, por isso, pertencente ao grupo de "imperadores mitológicos".

2. O original japonês, no seu conteúdo, é atestado pela aposição do selo imperial, um crisântemo, que timbra também o papel, sobre fita púrpura. O selo de papel que colava o envelope é também imperial.

3. O grande selo vermelho, carimbo, é o Selo do Estado do Japão ou Selo Real do Japão que é um dos selos nacionais do Japão, usado como selo oficial do Estado e atualmente usado apenas nos certificados das Ordens concedidas pelo Estado, estando o seu uso ilegítimo sujeito a penalizações civis.

MFG (BA)

Nos 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão: a embaixada Tensho e o seu relato na obra da Biblioteca da Ajuda, "De missione legatorum... "

O desembarque, na ilha de Tanegashima, dos navegadores portugueses António Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto, em 1543, marca o primeiro encontro entre Portugal e o Japão. Até essa data, este país do Extremo Oriente só era conhecido na Europa pelos escritos de Marco Polo (1298-1299), o qual, apesar de não ter ido além da China, refere diversas vezes a ilha de Cipango. Mas os seus relatos, contudo, não foram considerados totalmente credíveis, sendo mesmo, por vezes, considerados como invenções.
A missionação católica, iniciada com S. Francisco Xavier a partir de 1549, permitiu um melhor conhecimento destas paragens pelos europeus, através da epistolografia jesuíta. A carta com as primeiras impressões deste missionário sobre o arquipélago e os seus habitantes, escrita em Kagoshima, em novembro de 1549, conheceu uma enorme difusão na Europa, sendo editada em Coimbra, logo em 1551, e em Roma e Veneza, no ano seguinte. Esta relata que: "este povo é a delícia do meu coração [e é] gente de mui boa conversação, geralmente boa, e não maliciosa [...], de muitas cortesias uns com outros. É gente que não sofre injúrias nenhumas, nem palavras ditas com desprezo […] de muito juízo e curiosa de saber, asi nas cousas de Deus, como nas outras cousas da ciência"[1].
Era através dos jesuítas que a Europa do Renascimento e da Reforma descobria um Japão longínquo e exótico e, simultaneamente os japoneses contactavam com um mundo para além do arquipélago.
O projecto de inculturação do Cristianismo no Japão, levado a cabo pelos jesuítas, foi sustentado na estratégia de evangelização focada na aristocracia militar, aproveitando a capacidade de persuasão dos guerreiros junto dos respetivos vassalos, mas também na abertura do sacerdócio aos novos cristãos nativos, introduzida pelo P. Alessandro Valignano. A marca distintiva deste projecto foi a aproximação dos missionários ao mundo japonês, como estratégia de conversão.
Esta vontade de dar a conhecer aos europeus a missão japonesa e, simultaneamente, permitir aos japoneses o conhecimento da Europa esteve na génese da embaixada Tensho, organizada por Valignano, já nos finais do século XVI, altura em que Portugal perdera a independência após uma crise dinástica.
A referida comitiva era composta por quatro dáimios, dois deles alunos do seminário jesuíta de Arima, que pertenciam à alta nobreza japonesa. Foram acompanhados pelo P. Diogo de Mesquita que serviu de guia e de intérprete ao longo da viagem pela Europa.


Retrato da Missão Tensho na Europa, In: "Newe Zeyttung auss der Insel ]aponien" [Notícias da Ilha do Japão] Kyoto UniversityRare Materials Digital Archive

Gravura feita em Augsburg em 1586 retratando os dois jovens "embaixadores" japoneses (em cima) com seus dois assistentes (em baixo) e o jesuíta que os acompanhava (em cima no centro)



A viagem, cujo destino final era Roma a fim de serem recebidos pelo Papa Gregório XIII, demorou cerca de oito anos: o navio zarpou do Japão em 1582 e só regressou em 1590, passando por Portugal, Espanha e o norte de Itália. Dessa forma, Valignano mostrava à Santa Sé um cristianismo japonês, enquadrado perfeitamente na evangelização jesuíta.
Desta viagem resultou um relato escrito em forma de diálogo entre os jovens embaixadores recém-regressados da Curia Romana e os seus familiares e amigos que haviam ficado no Japão, através do qual os primeiros vão contando todas as novidades que haviam assistido na Europa. Escrita em latim, esta obra, da qual a Biblioteca da Ajuda possui um exemplar (B.A. 50-X-20), foi a primeira grande obra impressa em Macau, em 1590, na prensa trazida por Valignano, sob o título «De missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq; in Europa, ac toto itinere animaduersis dialogus […]»[2].
 

SANDE, Duarte de                                        
De missione legatorum Japonensium ad Romanam curiam rebusque in Europa ac toto itinere animadversas dialogus / ab Eduardo de SandeIn Macaensi portu sinici regni in domo Societatis Jesu (...), anno 1590. - 4.°.  — Pert.: Col. Nobres. — A.711

50-x-20 e 50-x-20A (fac simile)



Relativamente à sua autoria, as opiniões dividem-se, pois se para alguns, como Moran (2001)[3], Valignano teria escrito a obra em castelhano, sendo posteriormente traduzida para latim por Duarte de Sande, outros autores, nomeadamente Costa Ramalho[4], atribuem ao próprio Duarte de Sande a autoria da obra, que teria vertido para latim os relatos em japonês dos jovens dáimios.
Independentemente da sua autoria, esta obra reveste-se de especial importância por atestar a forma como os japoneses se interessaram e assimilaram a cultura europeia, designadamente a música.
Quando perguntam a um dos jovens dáimios como tinham passado a longa viagem por mar este responde que “muitas coisas há com que os navegantes podem entreter-se, para sofrerem com menor má disposição a longa passagem do tempo. Foi o que principalmente nos aconteceu: ora estudávamos a língua latina, ora tocávamos instrumentos musicais […] sem nos esquecermos das costumadas orações a Deus e aos santos. (De Missione…T.1, p. 128)
E sobre os instrumentos musicais dos europeus, revela que existem “Muitos e extremamente agradáveis, como por exemplo saltérios, harpas, liras, cítaras, para não falar de outros que pertencem à plebe e se tocam soprando, como flautas, sambucas, gaitas-de-beiços, trombetas e outros do mesmo género que fazem parte da orquestra e que todos eles tocados ou soprados com arte produzem uma suavíssima harmonia.” E ainda que o “canto europeu é composto de uma arte requintada. Nele, com efeito, ao contrário do que acontece com o nosso, não se conserva perpetuamente o mesmo tom de todas as vozes, mas uns tons são agudos, outros graves, outros intermédios, os quais, emitidos ao mesmo tempo artisticamente, produzem uma admirável harmonia. […] Entre nós, porém, porque no canto não há nenhuma diversidade de tons, mas um só e mesmo modo de emitir a voz, não existe até agora nenhuma arte e nenhum método em que estejam contidos os preceitos da sinfonia, ao passo que os europeus, graças à múltipla variedade dos sons, ao hábil fabrico de instrumentos e à multidão admirável de livros musicais e de figuras, ilustraram com grande relevo esta arte. (De Missione…T. 1, p. 230-231).






De Missione…, p. 230-231





Este fascínio pela polifonia por parte dos japoneses, que contrastava com o canto monódico comum no Japão da época, verificou-se quando, em Setembro de 1584, o arcebispo D. Teotónio de Bragança mostrou aos embaixadores o órgão do coro da Sé de Évora, que terá os maravilhado não só pelo seu enorme tamanho, mas também porque “tocando em hũa tecla moviãose tres ordens de teclas, que são três maneiras de órgãos, e fazem hũa sonora armonia”[5].

Construído pelo famoso organeiro Heitor Lobo, que esteve ao serviço da Sé de Évora entre 1544 e 1553, o órgão da Sé de Évora encontra-se instalado na sua tribuna, junto ao coro alto. É considerado o único instrumento deste período que chegou aos nossos dias, embora com extensas modificações que alteraram a sua configuração original[6]. Apesar das alterações que foi sofrendo ao longo dos tempos, parte dos tubos originais foi conservada, mantendo, assim, a sua sonoridade original, sem alterações significativas.



Órgão quinhentista da Sé de Évora

Fotografia de Francisco Bilou





Évora e os seus órgão de tubos [aqui]




Pode ouvir a sonoridade do órgão, que os embaixadores japoneses terão ouvido há 440 anos e que tanto os maravilhou, neste link: https://www.youtube.com/­watch?v=ZFVs6ZU0vtw.
Após o seu regresso ao Japão, a embaixada foi recebida, em 1591, em Quioto, juntamente com Valignano, por Hideyoshi, que sucedera a Nobunaga na política de unificação do Japão e que havia publicado em Julho de 1587 um édito anti-cristão, no qual se ordenava a expulsão dos padres e a proibição do culto.
Na ocasião os jovens cantaram e tocaram instrumentos musicais aprendidos na Europa, e explicaram ao senhor do recém-unificado Japão tudo o que tinham visto na sua viagem. Hideyoshi mostrou-se muito interessado nos relatos e, de acordo com Luís Fróis[7], pediu por várias vezes que continuassem a tocar. Depois, pegando nos instrumentos sobre os quais fez diversas perguntas, pediu que tocassem novamente.
O sucesso da embaixada Tensho não impediu, no entanto, todos os acontecimentos que se seguiram, que culminaram com a expulsão dos portugueses do Japão, apesar da cultura e da música europeias continuarem a fascinar os japoneses.

MJA (BA)

[1]Cartas que os padres e irmãos da companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Iapão & China aos da mesma Companhia da India, & Europa desdo anno de 1549. Até o de 1580 / impressas por mandado do Reverendissimo em Christo Padre Dom Theotonio de Bragança, Arcebispo d' Evora [...]. Em Evora : por Manoel de Lyra, 1598. Tomo 1. BA. 50-XIII-20, [exemplar da BNP aqui]
[2] De Missione Legatorum Iaponensium Ad Romanam Curiam Rebusq In Europa Ac Toto Itinere Animaduersis Dialogus [...] / Ab Eduardo De Sande [...].In Macaensi portu : in domo Societatis Iesu, 1590. [exemplar da BNP aqui]
[3] Moran, J.F. - The real author of de missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam..dialogus. Bulletin of Portuguese - Japanese Studies. N. 2 (june, 2001), pp. 7 – 21.
[4] Ramalho, A.C. - O Padre Duarte de Sande, S. I., verdadeiro autor do De Missione Legatorum Iaponensium ad Romanam Curiam … Dialogus. Revista de Cultura. 2ª série (1997), pp. 43-51.
[5] Fróis, Luís - Tratado dos embaixadores japões que forão de Japão a Roma no ano de 1582, [17--], p. 43
[6] João, PAIVA, Rui, d´ALMEIDA, Emanuel Santos - Portugaliae Monumenta Organica : Órgãos de Portugal. Lisboa: PolyGram/Selecções do Reader´s Digest, 1992.
[7] Fróis, Luís - História do Japam, anot. José Wicki. Lisboa : Biblioteca Nacional, 1984. Vol. 5

Dia Internacional do livro infantil: 2 de Abril

Na qualidade de “casa de livros” a Biblioteca da Ajuda (BA) assinala este dia atestando a importância e a intemporalidade dos livros, neste caso, para a infância.

No acervo da BA, ao contrário do que seria de supor,  pelas características patrimoniais do mesmo, não existiriam livros “ditos” infantis ou juvenis,  mas existem, efetivamente, dois exemplares diferentes, em séculos, colecções e raridade.

Uma dessas obras, classificada por Brunet[1] como Belle et très-rare edition..., da colecção de incunábulos[2]é a vida e fábulas de Esopo, numa versão Italiana e latina, ilustrada com belíssimas gravuras (xilogravuras), alusivas ao tema das fábulas e vida do seu autor, e com marcas da “proprietária” que assinalou, por toda a obra, evidências da sua posse, através do que consideramos ser um treino de grafia do seu nome, “Lucrezia Bolognese”, "Lucrezia bolocineze" "Lucezia belle", "A Lucrezia bolognese Ant".., e não só. Obra curiosa alia as fábulas e os seus exemplos morais, com ilustrações que serviriam para aguarelar, e algumas foram, à semelhança dos livros para colorir, atuais.

[Aesopi Vita et fabulae..] / [trad. lat.] Francisco Tuppo. - Napoli : [Francisco Tuppo e Germani Fidelissimi], 1485 Fevereiro 13. - [158] f. il. ; 2°. — Assin.: a6 b10 c8 e6 f6. — Pert.: Lucrezia Bolognese.. [ms.]

Colofão: ‘‘Impresse Neapoli ...sub anno domini M. CCCC. LXXXV. die XIII mensis Februarii’’.

BA 48-X-12

xilogravura não colorida

A outra obra, já em pleno século 19, Les contes de Perrault , com ilustrações de Gustave Doré[3], pertence à colecção de álbuns e tem aposto o selo do Arrolamento Judicial dos bens existentes no Paço da Ajuda “U’’’3129”[4], que certifica a sua pertença, à Casa Real.

Les contes de Perrault: desenhos de Gustave Doré. Preface par P.-J. Stahl
Paris: Hezel, 1862, 1862
BA 125-II-14

                           


Com características diferentes da obra de Esopo, apesar de tanto as fábulas como os contos de fadas remeterem para finais morais, esta é uma obra que, pelas suas dimensões generosas, qualidade das ilustrações e luxo da encadernação, poderemos classificar de aparato. Contos como Cinderela, o Gato das botas, Bela adormecida e tantos outros permanecerão no imaginário infantil, e não só, quer comecem pela frase, Era uma vez... ou Il était une fois...


Le maitre chat ou le chat botte [Gato das botas]




La belle au bois dormant [Bela adormecida]
Como o dia em questão também homenageia Hans Christian Andersen, cujos contos infantis se encontram entre os mais lidos de sempre, a BA recomenda a obra abaixo, referente à vinda a Portugal do príncipe dos contistas modernos.., como lhe chamou o escritor Júlio César Machadono artigo publicado, em 1885, na revista Ilustração Portuguesa e o portal da BNP, dedicado ao mesmo contista, por ocasião da exposição que, em 2005, assinalou os 220 anos do seu nascimento: 


A Ilustração Portuguesa : semanário : revista literária e artística, 2º Ano

N.º 17, 9 de Novembro de 1885 [aqui]




Uma visita em Portugal em 1886 /  Hans Christian Andersen;  tradução direta e notas de Dr. Silva Duarte. - Lisboa: Nova Lisboa Gráfica, Lda.; In-8º de 177, [3]p. páginas; ilustrado

BA 111-IX-50




Hans Christian Andersen: 1805-1875 (portal BNP) [aqui]


[1] Brunet, Jacques-Charles, Manuel du libraire et de l'amateur de livres. Tome I, Aa-Chytraeus / col. 98

[2] Designação do livro impresso com caracteres móveis, entre a invenção da prensa e o fim do séc. XV

[3] Gustave Doré (1832—1883), pintor, desenhador e ilustrador francês de livros de meados do século XIX

[4] Auto de Arrolamento 426: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4683796