A propósito dos 256 anos do nascimento de Manuel Maria Barbosa do Bocage (Setúbal 15 de Setembro de 1765- Lisboa 21 de Dezembro de 1805). Uma evocação no âmbito das Jornadas Europeias do Património a partir de alguns manuscritos e fragmentos avulsos da colecção da Biblioteca da Ajuda. Setembro de 2021
“Censura que João Guilherme Christiano Muller fez da parte do Desembargo do Paço ao 2º Tomo das Rimas de Manoel Maria Barbosa de Bucage”. BA 54-IV-34 (4)
[ms a lápis 1797-1799]
No manuscrito que V.ª Magde me mandou ver pela Portaria retro apresenta o seu prendado Author novas produções do seu raro talento, que lhe assegura hum lugar distincto entre os Vates insignes Lusitanos, aos quais ainda a Posteridade fará justiça. Poesias ternas que penetrão o coração e onde de vez em quando luzem vislumbres de esclarecida Filosofia, captivando a participação dos espíritos mais meditativos do que sentimentais. Fabulas graciosas que ensinão a prática das virtudes as mais benéficas e promovem a intuição de verdades nunca assas ponderadas Misturadas com traducçoens que patinteão tanta familariedade de seu Author com as belezas das Línguas dos Originaes, como também o seu acesso no sanctuario dos mais recônditos tesouros do seu idioma vernáculo; e com Epistolas, Odes e Epodos altissonantes nos quaes desenvolve toda a força de hum genio culto, e transcencendente, unido intimamente com huma fantasia inexaurivel poética: numa palavra tudo quanto pode servir de documento de hum gosto eminente para os mais admiráveis produtos de todos os tempos, e de todas as regioens do nosso Mundo de mão dada com a singular dexteridade de o transplantar sobre o pátrio chão em quanto neste se cultivão com igual diligencia, e feliz sucesso os seus próprios : de tudo isto he a presente collecção hum elegante florilégio. Bem pena he ser inevitável que se mostrasse em muitos lugares a influencia da atmosfera túrbida, carregada, e penosa, debaixo da qual o Author plantou grande parte deste rico jardim. Felizmente porem se percebe mais o efeito lamentável disto sobre a mente aflicta do poeta, que sobre as flores e fructos encantadores das vergônteas que regou com os effluvios do seu pranto, em cujo afago a sua Musa sempre conserva menos o caracter de Ministra de inhumanas, e indecorosas paixoens, do que de dictames da Razão e Moralidade e mimosa descripção, prompta a sacrificar tudo o que pode tentar a fraqueza humana a pecar contra respeitáveis Leis, boa ordem social, e tranquilidade civil, e domestica. Eisaqui as observaçoens que resultarão do exame deste manuscripto, e sobre as quaes se escora o meu parecer, que haverá poucos tam dignos da faculdade que o Sup.e solicita. V. Magde porem ordenara o que for servida.”Em 16 de Maio de 1792 o Príncipe Regente D. João nomeava como Deputado da “Real Meza da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros” João Guilherme Christiano Muller[1], justificando o gesto com o facto de querer “fazer uteis os conhecidos talentos e distincta Litteratura (…) que o fazem merecedor de toda a honra e consideração” [BA (54-IV-34 (5)]. Muller exercerá o cargo durante 22 anos, justificando os pareceres que elaborou no desempenho daquela Comissão, as expectativas de quem lhe fizera “mercê” de tal distinção.
Retrato de Bocage (miniatura), José de Almeida Furtado, o Gata (1778-1831), têmpera sobre marfim, MNAA, inv. 56 Min.[2]
O Censor Ilustrado.
A “Censura que João Guilherme Christiano Muller fez da parte do Desembargo do Paço ao 2º Tomo das Rimas de Manoel Maria Barbosa de Bucage” [ms BA 54-IV-34 (4)] vem confirmar a ideia, inovadora, sobre ter sido a Real Mesa Censória, e a que lhe sucede Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros[3], “um dos primeiros lugares onde se desenvolveu uma reflexão sistemática sobre as qualidades e defeitos estéticos das obras literárias”[4] pois, as “censuras” permitiam aos deputados, não só deliberar sobre a adequação dos escritos “aos padrões políticos, religiosos e morais do Reino”[5], impedindo a circulação dos que contivessem qualquer desvio em relação à norma, bem como, avaliar a forma como se expressavam os autores. Isto é, o facto da recusa da impressão poder ser justificada “com base em critérios estilísticos”, pelo modo defeituoso como os escritores se exprimiam na sua língua, sendo comum os censores discorrerem “longamente sobre a qualidade dos textos, do ponto de vista da pureza da linguagem, da construção de personagens, da elaboração das tramas, da observância aos preceitos poéticos e retóricos”[6], entre outros, demonstra um lado pouco divulgado do trabalho daqueles deputados.A “censura” tomava, assim, parte do projecto pedagógico na defesa da Ilustração contra o obscurantismo, do progresso contra a superstição, da separação do certo do errado, mas de igual modo, na defesa da clareza da exposição contra artifícios, condenando “metáforas e hipérboles sem alguma proporção; (de) frases affectadas e totalmente alheias do genio da nossa língua”[7], gongorismos, ou incorrecções que “tanto ofende[m], emaltrata[m] anossa Lingoa”[8], conforme se pode ler em alguns daqueles textos.
Aos “Reparos” que
Julião Cataldi, Secretário do Conselho Geral do Santo Ofício, fizera sobre o manuscrito
das Rimas, que incidiam tanto no que
respeitava “(d)o fogo lascivo e (d)as imagens
indecentes que animão estes versos”, tendo “o ultimo terceto, ou pelo menos” sendo “susceptivel de sentido impio, porque nelle o Poeta pertende justificar
a mesma paixão impura, a qual no quarteto antecedente havia chamado Igneo
desejo audaz (…)”, chamando a atenção para o verso “sem que importe ao rigor que eu viva ou morra”, arbitrando que “(…)
a liberdade poetica não pode chegar a
tanto que se declare assim contra o modo com que procede a Justiça nestes
Estados” [ BA 54-IV-34 (3a)]; argumentava
Bocage em sua defesa, condenando os seus carrascos, pois, escrevia:
“Quem por si ou por
outrem conhecer na desgraça o coração humano, saberá que o crime, e muito mais
o erro necessariamente se queixa do rigor, e o julga excessivo. Que menos pode
dizer um infeliz, abismado em huma das masmorras publicas desta cidade, onde a insensibilidade
dos guardas lhe desdenhava a existência como supérflua? O desafogo d´aquele
verso só a estes alude, e compete a quem não sendo um perverso, padeceu algumas
vezes, o que a eles se deve. Confesso, alem disso é uma perfeita ingenuidade,
que me não sinto capaz de substituir áquele verso outro, que exprima tão bem
uma situação lastimosa, e desamparada; preferindo antes a supressão de toda a
Epístola á de huma parte della, que me parece tão essencial”. Terminava “V. Magde porem mandara o que for servida”
BA 54-IV-34 (3).
Entre o parecer de Cataldi, condenador, e os argumentos de Bocage em defesa do poema enquanto reflexo da sua própria vivência, a decisão final cabia ao Príncipe Regente que manda João G. Christiano Muller, analisar as poesias. Este, inspirado pela novidade da escrita e pela força do que considera ser “um génio culto”, ou “um raro talento”, não gasta uma só linha da sua prosa a sentenciar o autor e, bem pelo contrário, cumula-o de elogios, pois considera “que haverá poucos tam dignos da faculdade que o Sup.e solicita”.
Iniciando o seu parecer, estabelece desde logo o lugar que
Bocage deveria ocupar no seio da literatura lusitana - “No manuscrito que V.ª Magde me mandou ver pela Portaria retro apresenta
o seu prendado Author novas produções do seu raro talento, que lhe assegura hum lugar distincto entre os Vates
insignes Lusitanos, aos quais ainda a Posteridade fará justiça”, para de seguida identificar os
tópicos de modernidade naqueles versos - “Poesias
ternas que penetrão o coração e onde de vez em quando luzem vislumbres de
esclarecida Filosofia, captivando a participação dos espíritos mais meditativos
do que sentimentais”. Considerando que “com
Epistolas, Odes e Epodos altissonantes nos quaes desenvolve toda a força de hum
genio culto, e transcencendente, unido intimamente com huma fantasia inexaurivel
poética” coloca-o num patamar de qualidade supranacional - “numa palavra tudo quanto pode servir de
documento de hum gosto eminente para os mais admiráveis produtos de todos os tempos,
e de todas as regioens do nosso Mundo de mão dada com a singular dexteridade de o
transplantar sobre o pátrio chão em quanto neste se cultivão com igual
diligencia, e feliz sucesso os seus próprios: de tudo isto he a presente
collecção hum elegante florilégio”.
A “ilustrada”
censura de Muller, apontando tanto
para a “esclarecida Filosofia”, como
para a força da expressão poética, culta e introspectiva, traduziu-se na autorização
para a impressão da obra, demonstrando como, no final do Antigo Regime, as
tensões ideológicas e sociais existentes encontravam no Regente uma resposta
que, conciliadora, não deixava de apontar as inovações estéticas, ideológicas e
culturais que despontavam, o que levou autores como Ana Cristina Araújo a
condenar a utilização da expressão de “Viradeira”,
para “significar o retrocesso decorrente
da política “repressiva” e “reacionária” de D. Maria I”, e Regência de D.
João, no campo da cultura[9],
tese que parece ir ao encontro da afirmação de Jorge Pedreira de que
apesar de durante a regência-reinado de D. João VI ter “havido restituição da censura dos livros, teria sido essa censura no
seu tempo tão suavemente exercida que nunca pessoa alguma deixara de ter com
facilidade quaisquer obras”[10].
Censura que se exercia de uma forma branda que não impedia a circulação de
obras “suprimidas”, ainda que na mão
de uma elite, sendo pois frequente a existência de livros “suprimidos” constarem nos inventários quer de particulares, quer de
Livrarias de Ordens Religiosas.
MMB
[1] Hans
Christian Muller, (Gottineng, 1752 – Lisboa 1814), intelectual de elevada
craveira que veio para Portugal em 1772 para exercer a sua actividade de pastor
protestante. Convertido ao catolicismo, foi nomeado deputado à Real Mesa
Censória, sendo ainda membro da Academia Real das Ciências.
[3] A Real Mesa da Comissão Geral para o Exame e a Censura dos Livros foi criada, por Decreto de D. Maria I, em 28 de junho de 1787 para substituir a Real Mesa Censória criada pelo Alvará de 5 de abril de 1768, no reinado de D. José I. Ver https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4311313. Consulta em 21.09.21.
[4] ABREU, Márcia, Censura Lusitana : uma pré-história da crítica literária. Disponível em http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/ensaios/censura.pdf. Consulta em 20.09.21.
[5] ABREU, Márcia, No papel de leitor: a censura a romances nos séculos XVIII e XIX. Disponível em https://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/marcia_abreu.html.
[6] ABREU, Márcia, Censura Lusitana : uma pré-história da crítica literária. Disponível em http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/ensaios/censura.pdf. Consulta em 20.09.21.
[7] In TAVARES, Rui, O Censor Iluminado. Ensaio sobre o Pombalismo e a Revolução Cultural do Século XVIII, Ed. Tinta da China, 2018, p. 621.
[8] ABREU, Márcia, No papel de leitor: a censura a romances nos séculos XVIII e XIX. Disponível em https://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/marcia_abreu.html.
[9] ARAÚJO, Ana Cristina, A Cultura das Luzes em Portugal Temas e Problemas, Livros Horizonte, 2003, p.18. Disponível em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/47433/1/A%20Cultura%20das%20Luzes%20em%20Portugal.pdf. Consulta em 21.09.21.
[10] Pedreira, Jorge; Costa, Fernando, D.João VI, o Clemente, Círculo de Leitores, 2006, pag. 21.