RELATÓRIO de Ramalho Ortigão, director da Real Biblioteca
da Ajuda, enviado a el-rei D. Manuel II.
18 fls. - Ms. s. papel tarjado com cercadura a negro e com timbre da
‘‘Real Bibliotheca da Ajuda’’ com as armas reais nos 9 folios (f. ímpares).
[f.1r.]
[RELATÓRIO]
Ajuda Março
1908
Meu Senhor
Na qualidade de
bibliothecario de El Rei o Senhor D. Carlos que Deus tenha na gloria
imperecivel, cumpro neste papel o doloroso dever de dar conta a Vossa Magestade
do desempenho das minhas funções na direcção da Real Bibliotheca da Ajuda.
Para
esse effeito me permitto expôr em sucinto relatorio qual o modo [como (sobreposto)]
encontrei organizada a Real Bibliotheca, e qual o estado em que neste momento
me cabe // [f.1v.] a honra de a entregar a Vossa Magestade.
Perante
o culto espírito de Vossa Magestade, que, bem recentemente ainda visitava como
príncipe esta Casa, patenteando pela sua origem, pela sua função e pelo seu
destino o mais esclarecido interesse, inutil recordar aqui a gloriosa história
da Bibliotheca Real e da alta influencia que ella tem exercido na evolução da
mentalidade portuguesa e no fecundo prestigio litterario que teve no mundo a
nossa pequena patria. //
[f.2r.]
Desaparecera destruida pelo terremoto de 1755 a primitiva livraria régia, a esse tempo
estabelecida na casa chamada do Forte nos Paços da Ribeira, e composta das
obras de princípio certamente colligidas pelo sabio Rei trovador D.
Diniz; depois pelos reis e príncipes poetas, escritores e bibliografos D. João
1º, D. Duarte, o infante D. Pedro, o infante D. Henrique, e D. Affonso V; pela
rainha D. Leonor, que tão devotamente patrocinou a introdução da tipografia em
Portugal; por El Rei D. Manoel, que com tanta magnificencia enri//queceu [f.2v.]
a nossa coleção de illuminuras; pelo infante D. Fernando, do qual Damião de
Goes, o grande amigo d’Erasmo, de Dürer e dos mais gloriosos humanistas da
Renascença, era o agente litterario e artistico na Flandres, na Alemanha, na
Italia e nos paizes setentrionaes da Europa; pela rainha D. Catharina e por D.
João III, cujas copiosas colleções se reuniram em Evora; por D. João IV, cuja
livraria de musica foi a primeira do mundo; por D. João V finalmente, que pelo
// [f.3r.] dispendioso inquerito a que mandou proceder nos Cartorios de Roma
formou o importante repositorio Rerum lusitanicarum collectio generalis, que
felismemente se conserva ainda entre os manuscritos de Vossa Magestade.
Logo
depois do terremoto, com os primeiros trabalhos da reedificação de Lisbôa, é
reconstituida a Bibliotheca Real em casas provisorias para esse fim construidas
junto da egreja de que ainda existe a torre do relogio. //
[f.3v.]
Para ter conhecimento das relações da contiguidade entre a Bibliotheca e o Paço
da Ajuda convem conhecer nas suas linhas geraes a historia das reedificações
deste palacio. Existia anteriormente ao terremoto um palacio real no alto da
Ajuda, a oeste da calçada do mesmo nome e junto do Jardim Botanico. Esse
edificio, de que ainda existem fragmentos, era uma habitação suplementar,
especie de Casa de Campo ou de recreio da família real, ordinariamente
residente no Paço da Ribeira. Depois do abalo de terra e do subsequente
incendio que destruiu o Paço // [f.4r.] da Ribeira, reconhecendo-se que
o Paço da Ajuda não offerecia acomodações suficientes para residencia
permanente da família real, edificou-se um palácio provisorio, quase
completamente de madeira, de forma abarracada, mas esmeradamente ornamentado.
Pelo mesmo tempo se edificara a Bibliotheca, a que o Paço Abarracado se ligava
por um passadiço. Este palácio foi devorado por um incendio no dia 10 de
Novembro de 1794, salvando-se a bibliotheca por se haver oportunamente cortado
o passadiço que a punha em contacto com o palácio incendiado. Logo // [f.4v.]
no anno seguinte (1795) se lançou a primeira pedra do palacio monumental que ao
presente existe, refasendo-se o passadiço de communicação com a casa da
livraria.
Nessa casa se
depositaram, desde que ella se edificou e d'ahi por deante, juntamente com as
raras peças da Bibliotheca d'El Rei e da Bibliotheca do Infantado salvadas do
Cataclismo, livros de diversas procedencias: os da excellente livraria de
Barbosa Machado por elle offerecida a El Rei D. Jose; [os da livraria
(riscado)] // [f.5r.] os da livraria de Nicolau Francisco Xavier da
Silva, comprada por El Rei; os da livraria do Conde de Redondo, e os
confiscados aos Jesuitas e aos fidalgos julgados cumplices no atentado contra a
vida de El Rei D. José; etc. Foi esta copiosa e rica colleção que em 1811 o
Principe Regente mandou ir para o Brazil juntamente com a dos manuscritos da
coroa a esse tempo arrecadados no Convento das Necessidades. Os manuscritos
voltaram quase integral//mente [f..5v.] para Lisboa a seguir ao regresso
da familia real, e são os da actual collecção da Ajuda. Os impressos, em numero
de cerca de 60 mil, ficaram em sua quasi completa totalidade no Rio de Janeiro,
onde constituiriam o fundo da Bibliotheca Nacional, destinando-se os duplicados
a nucleo da Bibliotheca da Bahia. Juntamente com os livros da Bibliotheca Real
da Ajuda ficaram no Brazil numerosas tapeçarias, alfombras e panos de armar, de
alto valor, ali completamente destruidos e reduzidos a pó pelo bicho cupim.
Entre os livros foi mais tarde // [f.6r.] encontrada pelo bibliothecario
brasileiro Ramiro Galvão uma preciosa colecção de gravuras de Alberto Dürer.
(...)