Subsídios para a História da Biblioteca da Ajuda. O reinado de D. Miguel (1828-1834). O catálogo manuscrito 51-XIII-8: Parte III

Em anteriores textos [aqui] abordámos episódios da história da Biblioteca da Ajuda, focando, essencialmente, períodos menos estudados do seu longo e acidentado percurso. 

Escrevia Mariana Machado dos Santos, directora da Biblioteca da Ajuda (BA) entre 1954-1974, que, após “quase uma década a reunir material”, aguardava sempre que “em novas e persistentes pesquizas”, algo de novo surgisse. Movidos pelo mesmo espírito indagador que os livros e documentos suscitam, e no confronto com alguma documentação manuscrita que integra o acervo interno da casa, foi possível reunir alguma informação, menos conhecida ou, até agora, inédita, permitindo desvendar e acrescentar novos contributos para a história desta instituição.

Referimos já algumas das medidas com as quais se procurou reconstruir o brilho da Real Biblioteca Particular, após o retorno da Família Real a Lisboa, em 1821, depois do capítulo brasileiro, quando apenas regressaram, com o Padre Dâmaso [aqui], os manuscritos da Coroa, e eventualmente as Bibliotecas particulares das pessoas reais. O “depósito legal”, determinado por D. João VI, pelos Alvarás de 12 de Setembro de 1805 e 30 de Dezembro de 1824, publicado a 10 de Janeiro de 1825 [aqui], relativo à Biblioteca Pública, e extensivo à “Real Biblioteca Particular”, pelo Alvará de 6 de Fevereiro de 1832, publicado a 11 de Fevereiro [aqui], no reinado de D. Miguel (1828-1834); o confisco das bibliotecas dos opositores liberais e a entrega da do Colégio dos Nobres, durante o governo deste último; as doações de bibliotecas por parte de pedagogos dos príncipes; e as da Princesa Maria Francisca Benedita (1746-1829) e da Imperatriz Rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830); e, posteriormente, durante o Governo liberal, depois de 1834, as incorporações, a partir das Livrarias conventuais, uma área mais vezes referida, todas estas circunstâncias se traduziram, num significativo ingresso de obras e no enriquecimento da Biblioteca Real.Abordamos, em anteriores capítulos, o reinado de D. Miguel (1828-34), por ser um dos períodos menos tratado, continuando a oferecer algumas “surpresas”, nomeadamente no que respeita as incorporações das bibliotecas dos exilados políticos, isto é, dos designados “banidos”, pronunciados em “Devassas de rebelião”, conforme exarado no Acórdão de 11 de Setembro de 1829 [aqui].

A devolução, durante o governo de D. Maria II (1819-1853), das livrarias sequestradas a figuras que viriam a ser as de proa do regime liberal, parecia um facto seguro, pois alguma documentação apontava nesse caminho.

No entanto, a consulta dos catálogos manuscritos, datados de entre os anos 1829 e 1831, guardados na sala dos manuscritos da BA, fizera-nos suspeitar que seria questionável aquela conclusão, pois, no confronto daqueles inventários, nomeadamente nos que respeitam as livrarias confiscadas, com o acervo da BA, fora possível localizar alguns exemplares neles mencionados.

Na consulta do catálogo 51-XIII-8, em cuja folha de rosto se pode ler “Manuscritos” em letra gótica, e na contracapa, a lápis, “Biblioteca Real?”, na sua segunda parte, intitulada “Catalogo dos Mapas // anno de 1831”, verificou-se que, para além da descrição sumária, feita em colunas verticais, nas quais se identificam o autor, o título, ano, e formato, das obras, são incluídas, ainda, designações topográficas - “Caixa”, “Nºs”, “Estante”, e por fim, a informação quanto a “Origem”. 


Esta última, rara neste tipo de catálogos, constitui um auxiliar precioso para a pesquisa que encetamos, quanto às incorporações que definiriam o perfil da Biblioteca Real ao longo do século XIX, da qual a actual Biblioteca da Ajuda é herdeira.

Salienta-se, naquela coluna, a referência a um conjunto de personalidades mencionadas no Acordão de setembro de 1829, os identificados como de “banidos”, na documentação oitocentista do arquivo interno.

Assim, naquele catálogo, e no campo relativo a “Origem”, observamos duas ordens de incorporações:

1. As relacionadas com as Livrarias doadas, para as quais apontam as designações “Rocha”, relativa à biblioteca de José Monteiro da Rocha, com cinco entradas; “R.R.”, de Ricardo Raimundo Nogueira, com trinta e uma; “I.Rai.”, Imperatriz Rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon, com dez entradas; “Princ.”, relativa a obras da Princesa D. Maria Francisca Benedita, com dez; “Coroa”, com sete; “B.P.”, Biblioteca Pública, com uma; “T.R.”, Tipografia Régia, com três, estas últimas, eventualmente, relacionadas com as disposições do depósito legal, na parte que respeitava a obrigação da entrega, na Real Biblioteca Particular, de “Mappas, Cartas, e Estampas, gravadas neste Reino”, por parte de seus autores, ou editores;

2. As seguintes identificações: “Calh.”, com dezassete entradas; “C.J.X.er”, com três; “V.ª Flor”, com apenas uma; e “Palm.ª”, com cento e dezanove entradas de catálogo, estas constituindo o núcleo com maior número de exemplares, são referências que apontam para a incorporação da componente cartográfica das livrarias dos exilados políticos, às quais as abreviaturas aludiam, isto é, Calhariz, Cândido José Xavier, Vila Flôr[1] e Palmela[2].

A Geografia. Os livros e a cartografia na BA

Assim, de acordo com a natureza do mencionado catálogo, estas últimas referências reportam-se a livrarias sequestradas, cuja componente relativa a Cartografia, teria sido integrada em núcleo temático da Real Biblioteca Particular, com uma numeração própria.

Aliás, terá sido a existência dessa mesma numeração, em caracteres árabes, aposta nas capas ou encadernações de alguns exemplares da BA, relacionados com a Geografia e a Cartografia, que nos despertara para a possível existência, na antiga Livraria Régia, no Paço Velho, de um núcleo específico, dedicado à Geografia e Cartografia, no qual se inseririam as obras que o manuscrito 51-XIII-8 refere.

Tendo em vista esclarecer a questão, sempre presente, de saber se as obras que integravam as livrarias dos “banidos”, teriam, ou não, sido integralmente devolvidas, após a consagração do regime Constitucional, procuramos localizar na BA algumas das referências contidas no mencionado manuscrito.

Desde logo nos chamou a atenção a menção ao Atlas sive Meditationes de Fabrica Mundi et Fabricati Figura, de Gerardus Mercator, exemplar impresso em Amesterdam, datado de 1630, ao qual fora atribuído o nº 333, e a indicação de origem “Calh.”, abreviatura para Calhariz, como já viramos. 








Feita uma pesquisa no acervo da BA verificou-se a existência de dois exemplares do referido Atlas, com idêntica descrição catalográfica:


- Atlas sive Cosmographicae meditationes de fabrica mundi et fabricati figura (…). Gerardi Mercatoris. Editio quinta. Amsterodami (…), 1623, com rótulo “Ex Bibliotheca Congregationis Oratorii (…)”, pelo que incorporado a partir da Livraria dos Oratorianos das Necessidades, com a cota 13-VIII-7




- Atlas sive Cosmographicae meditationes de fabrica mundi et fabricati figura. Primum à Gerardo Mercatore inchoatae de indè a Iudoco Hondio (…), igualmente impresso em Amesterdão, mas datado de 1630, conforme o que vem referido no mencionado catálogo. Este exemplar, com a cota 13-VIII-8 e sem marcas de posse, apresenta todas as cartas integralmente aguareladas. O ficheiro manual da BA atribuía, a anterior posse, à Livraria do Colégio dos Nobres;

Ora consultado o catálogo da Livraria do Colégio dos Nobres, cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Nacional, [aqui], apesar de parte daquele acervo se encontrar na BA, verificou-se que o exemplar que pertencera àquela instituição, com igual descrição, era datado de 1613. Pelo que não poderia corresponder ao Atlas 13-VIII-8 da BA.



Um outro Atlas daquele célebre cartógrafo existente no acervo - Atlas novus sive Descriptio geográfica totius orbis terrarum (…), diferenciava no título e data, pois era datado de Amesterdão, 1638,  apresentando exlibros ms. “Da Livraria Pública de S. Roque”. Cota 13-VIII-9 a 11.










Assim, considerando que a descrição catalográfica contida no catálogo ms. 51-XIII-8, relativa ao Atlas de Mercator, cuja origem se reporta a “Calh.”, corresponde ao exemplar com a cota 13-VIII-8, da BA, somos levados a concluir que este, não podendo ser o do Colégio dos Nobres, pelas razões apontadas, poderá ser aquele, objecto de confisco, não tendo sido devolvido ao seu anterior proprietário, com a queda do governo miguelista.


Este exemplar apresenta uma encadernação de pastas de papel marmoreado mecânico, igual à dos catálogos daquela estante, datados de entre os anos de 1829-1831, pelo que deverá ter sido feita por aquela ocasião. Nada sabemos da anterior. Conteria alguma marca de posse ou superlibros dos Souza do Calhariz, da qual descendia a Casa Palmela[3], pois Calhariz e Palmela significavam a mesma família? Esta é mais uma dúvida para a qual não encontramos resposta.

No ms. 13-VIII-8 surgem duas origens para a que seria a mesma família, facto que poderia induzir-nos a considerar a existência de dois proprietários distintos, para o que aquelas duas designações apontariam. Ora, pelo facto de o primeiro e único Conde de Calhariz, D. Alexandre, filho primogénito de D. Pedro de Sousa Holstein, ter morrido com 20 anos em Ponta Delgada, no ano de 1832, no decurso das manobras das forças liberais, não tendo ainda casa própria, somos levados a aceitar que aquelas designações deveriam reportar-se a proveniências geográficas diferenciadas, de casas daquela família, então exilada.

Escreve Pedro Urbano, “Uma das características desta família é a sua grande mobilidade, decorrente”, não só, “das missões diplomáticas do primeiro Duque” mas também “dos exílios políticos a que se viu obrigado”[4]. Mesmo nos períodos em que permaneceu em Portugal, foram várias as moradas em Lisboa, “Entre 1821 e 1824, o Duque e a sua família habitaram na freguesia de S. Bartolomeu, sempre em moradas diferentes: Rua de D. Vasco, em 1821; Sítio da Boa Hora em 1823 e Pátio do Calhariz, em 1824, locais inclusive muito próximos entre si”[5], às quais se deviam acrescentar as permanências na Casa do Calhariz, em Sesimbra.

Assim, “Palm.ª” deveria reportar-se à residência do então marquês (em 3/6/1825), em Lisboa, e “Calh.” à Quinta do Calhariz, em Sesimbra, sede do morgado daquele ramo dos Souza que, “desde a origem, com o morgado de Monfalim, constituíram elementos essenciais da identidade da casa”[6].

Tal como anteriormente referimos, a menção “Palm.” corresponde a cento e dezanove entradas, e a “Calh.” a dezassete, pelo que as Livrarias destas Casas objecto de confisco, conteriam um núcleo significativo de Mapas e Cartas Geográficas, agora integradas na Biblioteca Régia. O facto de o percurso de D. Pedro de Sousa e Holstein, primeiro conde, primeiro marquês e primeiro duque de Palmela, por decreto de D. Pedro enquanto regente, ter sido em parte no estrangeiro, no desempenho de funções diplomáticas em Roma, onde acompanha seu pai D. Alexandre, e por nomeação régia, em Espanha, e posteriormente em Londres, Paris, e Viena, onde, participa no Congresso de Viena (Nov. 1814-Jun. 1815), como ministro plenipotenciário[7], pode justificar a existência de um tão amplo conjunto de espécimes cartográficos, necessários ao desempenho das suas missões.

Da derrota napoleónica, pós Batalha de Waterloo em 1815, resultara um necessário redesenhar das fronteiras dos países europeus o que exigia um domínio da Geografia europeia e dos interesses ultramarinos das potências em confronto. A carreira política posterior de D. Pedro de Sousa e Holstein (1781-1850), fortemente marcada pelo apoio a D. Pedro IV (1798-1834), e à causa liberal, determinara novos exílios e sucessos diplomáticos, para reconhecimento da causa liberal e com ela de D. Maria II (1819-1853), no governo de Portugal, por parte de diversas cortes europeias.

No entanto, para além da colecção de Mapas e Cartas que eram pertença da Casa Palmela-Calhariz, que podem ter tido diversos usos, desde de apoio às funções diplomáticas no complexo xadrez político de oitocentos, aos pedagógicos, e que agora se encontravam na Ajuda, o exemplar do Atlas de Mercator, traduzia uma outra ordem de valores, pois era uma obra de aparato, que congregava a informação útil sobre a definição territorial dos países, com o elemento estético que lhe era conferido pela singularidade dos mapas aguarelados.

A confirmar-se a permanência na Biblioteca Régia de obras que não teriam sido devolvidas após a Convenção de Évora Monte, em 1834, que significara o exílio de D. Miguel, nomeadamente no que respeita as da Casa Palmela, poderá ser explicada com a “reserva” de D. Pedro de Sousa e Holstein de pedir ao novo governo de D. Maria II, as obras anteriormente confiscadas, e que agora integravam a Real Biblioteca Particular? Poderemos considerar, que para uma Casa que se distinguira no apoio à consagração do Regime Constitucional e que empenhara todo o seu esforço e património no reconhecimento da “causa” de D. Maria II, tal poderia ter significado um novo serviço prestado aos que tinham elevado a Casa Palmela a ducado, em 1833, ainda antes da vitória do partido liberal?

A eventual localização de mais exemplares contemplados no ms. 51-XIII-8, afectos aquela Casa, ou à de outros “banidos”, poderá ajudar a consolidar, ou não, a tese da permanência na BA de boa parte das obras confiscadas durante o reinado de D. Miguel I.

Mafalda M. B.


[1] O então conde de Vila Flor, António José de Sousa Manoel de Meneses Severim de Noronha (1793-1860), futuro duque da Terceira, ocupara, com o então marquês de Palmela, a Regência, em nome dos interesses e da “causa de D. Maria II”, na ilha da Terceira, em 1830, que sairia vencedora a partir de 1834.

[2] Para designar D. Pedro de Sousa e Holstein (1781-1850), feito conde em 11.04.1812, elevado a marquês em 3.06.1825 e a duque em 04.1833, ainda antes da vitória liberal. Apud. Bonifácio, Maria de Fátima, (transcrição, prefácio e edição), Memórias do Duque de Palmela, Publicações D. Quixote, 2011, pág. 30.

[3] Utilizamos o substantivo Casa com maiúscula, no sentido genealógico, de família nobiliárquica, enquanto entidade institucional, e casa para a componente edificada, isto é, residencial, pelo que podemos referir as propriedades da Casa, os vínculos e morgadias que a ela estavam associados. Disponível [aqui]. Consulta em 18 de novembro de 2020.

[4] Urbano, Pedro, A Casa Palmela e o desafio liberal: estratégias de afirmação, dissertação de mestrado em História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa, 2005, pp. 197-198 [aqui]. Consulta online em 17 novembro 2020.

[5] Idem, Idem.

[6] Bonifácio, Maria de Fátima, (transcrição, prefácio e edição), Memórias do Duque de Palmela, Publicações D. Quixote, 2011, pág. 15.


Sem comentários: