Subsídios para a História da Biblioteca da Ajuda: A Livraria do Paço Velho


Segundo Mariana A. Machado Santos[1], na sua monografia sobre a Biblioteca da Ajuda, a Livraria do Paço da Ajuda apresentava alguma desorganização nos seus anos de instalação no Paço Velho, a nova morada da Família Real, após o terramoto de 1755, no sítio de Nossa Senhora da Ajuda.

A Família Real não dispensara a formação de uma nova biblioteca, no novo local de residência. Instrumento fundamental para a instrução dos príncipes era, de igual modo, um elemento principal na representação do poder monárquico, que se queria afirmar “ilustrado”. Contrariamente ao Paço, construído em madeira, as edificações do Real Gabinete de Física e da Real Livraria, anexa à Igreja Patriarcal, seriam em alvenaria de pedra e cal, o que as viria a salvar do incêndio que, no ano de 1795, destruiu a “Real Barraca”, assim denominado popularmente. Nos anos iniciais, para a instalação da Livraria Real, contribuiriam os “livros salvos do incêndio do Paço da Ribeira[2], aos quais se agregariam outros espólios, dos quais se destacam os provenientes da aquisição, em 1757, à viúva do Conde de Redondo, da Livraria de seu marido, D. Tomé de Sousa Coutinho (1677-1717)[3], e na qual se incluía, entre livros de História, de Geografia, mapas e iconografia, manuscritos e demais preciosidades, o célebre manuscrito do humanista Francisco de Holanda (1517-1585) - “Da Fábrica que falece à cidade de Lisboa”, objecto de especial apreço enquanto documento de reflexão urbanística sobre os empreendimentos necessários a Lisboa, como capital de Império; e os da doação, em 1770-1773, da Biblioteca do Abade Barbosa Machado (1682-1772), negociada por frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas (1724-1814). No entanto, segundo aquela autora, “a instalação era precária, e tanto as ofertas e compras, como os espólios das confiscações políticas (que as houve bastantes), ou as doações” que sucederam, não foram “acompanhadas do trabalho de organização bibliotecnómica que se requereria para que se pudesse usufruir o proveito que esses espólios biblíacos poderiam proporcionar” pois, “andavam muitos livros amontoados, por falta de estantes, por carência de espaço, de salas, de atenção condigna, em suma[4]. Importa acrescentar que a ida da Família Real para o Brasil, e o seu regresso em 1821, tinha introduzido mais um capítulo na História desta instituição, pois por lá permaneceria o núcleo central daquela que seria a futura Biblioteca do Rio de Janeiro.
Desfalcada de importantes conjuntos, como os que ficaram no novo Reino, tornava-se imperioso, então, encetar uma nova etapa de aquisições, trocas e incorporações, pois como diria Francisco Cunha Leão (diretor de 1989 a 2005) -Poucas bibliotecas sofreram destruição e história tão turbulenta como a Biblioteca da Ajuda”. Entre viagens e causas naturais muito se perdera e dispersara.
Nesta longa história de séculos continuam, no entanto, a subsistir incógnitas quanto ao modo como, nas décadas posteriores à vinda da Família Real do Brasil, foram sendo supridas as carências de obras reputadas, necessárias à dignidade de uma Livraria Real.
 
As incorporações

Refere Mariana Machado Santos (diretora de 1954 a 1974), as muitas “confiscações políticas” que terão contribuído para colmatar as falhas existentes naquela Livraria Real, sem, no entanto, chegar a identificar, ou a esclarecer em que momentos, e quais as instituições, ou personalidades, que foram objeto de confisco.
Na história da Biblioteca da Ajuda é comummente utilizado o termo “confisco” para mencionar as Livrarias agregadas no reinado de D. Miguel (1802-1866), pertencentes aos emigrados políticos, “os banidos”, enquanto o termo “incorporado” é usualmente utilizado para as obras provenientes das livrarias dos Conventos extintos, quer as das Casas Jesuíticas, após expulsão da Ordem, em 1759, no reinado de D. José I (1714-1777), quer as decorrentes do decreto de maio de 1834, por iniciativa do ministro Joaquim António de Aguiar (1792-1884). Tal distinção pode, no entanto, ser questionada, pois tanto foram confiscados os bens aos exilados liberais, como o foram as Livrarias afectas aos conventos dos Jesuítas, banidos em 1759, como, posteriormente, as dos conventos extintos, pelo decreto liberal de 1834.

Nesta ordem de ideias, no que respeita a “confiscações políticas”, grosso modo, podemos considerar três momentos que contribuíram para o enriquecimento dos espólios das instituições patrimoniais, de entre as quais sobressai, como beneficiária, a Biblioteca da Ajuda:

- As ocorridas na sequência da expulsão dos Jesuítas, em 1759, no reinado de D. José I, que permitiu a integração de obras impressas e manuscritas das Livrarias de Casas da Companhia, tais como a de S. Roque, a de S. Antão, a de Coimbra, entre outras. Esta incorporação foi feita, em parte, através da Livraria do Colégio dos Nobres[5], onde a “Livraria jesuítica” se encontrava depositada;

- As ocorridas no reinado de D. Miguel (r. 1828-1834) e que se relacionam com as Livrarias confiscadas aos opositores políticos exilados;
 
- E, na sequência do banimento de D. Miguel (1802-1866) e da afirmação do governo de D. Pedro IV (1798-1834), as que decorreram da extinção das ordens religiosas regulares, isto é dos Conventos, Mosteiros, Colégios e Hospícios, em 1834, e das consequentes incorporações dos livros pertencentes às Livrarias daquelas casas religiosas, relativamente às quais, a que teria maior impacto na Biblioteca da Ajuda, seria a dos Oratorianos das Necessidades, cuja incorporação data de 1857, durante a vigência de Alexandre Herculano (1810-1877) como bibliotecário-mor[6], já no reinado de D. Pedro V (1837-1861, reinou a partir de 1853).

 Do Reinado de D. Miguel ao advento do Regime Constitucional
Importa-nos agora observar a informação relativa ao reinado de D. Miguel (1828-1834), por ser um período relativamente pouco tratado, no que respeita a história da Biblioteca e que correspondeu à gerência do bibliotecário-mor P. José Manuel de Abreu e Lima[7]. Nessa ocasião ter-se-ia procedido a entrega de livros provenientes do extinto Colégio dos Nobres, do qual teriam vindo para a Ajuda, “em 1831 e 1832”, oito mil cento e vinte e quatro volumes, de entre os quais o celebrado Cancioneiro dos Nobres, atualmente denominado da Ajuda.

Para além desta importante remessa, temos ainda notícia, em alguma documentação manuscrita inédita, que teriam sido entregues várias Livrarias na então Real Biblioteca da Ajuda, que podem configurar o “confisco político”, nomeadamente as Livrarias pertencentes ao Marquês de Sampaio, ao Duque da Terceira, ao Duque de Palmela, ao Conde de Linhares, ao Visconde de Laborim, ao Marquês de Ponte de Lima e Condessa de Óbidos, bem como a de Cândido José Xavier[8], destacado elemento das hostes liberais.
Diversos folios manuscritos contêm as listas de livros entregues no reinado de D. Miguel, quer os oferecidos, quer os confiscados, como é o caso do “Catálogo dos Livros do desembargador, banido, Sampaio”.

Num outro folio, igualmente manuscrito, são mencionadas as obras que teriam ido “para o Quarto de El Rei a 13 de Maio de 1832” e que seriam as seguintes “10 Vol.s da Galeria do Museu de França, e os Vol.s da Revolução Français, todos pertencentes á Livraria do Palmella” [sic].

Refere o mesmo folio ter ido, na mesma ocasião, para o “Quarto da Açafata da Snr.ª Infanta D. Maria de Assumpção a Obra intitulada Theatro de Corneille 3 Vol.s em 8º pertencentes a Livraria que foi da Casa d´Óbidos[9]. No entanto, relativamente a esta, surge à frente, em letra maiúscula, um E que nos faz supor que teria sido devolvida, ou entregue.
                                                                                                                          
Tal suposição fundamenta-se em documentação, já da gerência do P. António Nunes (1837-1839)[10] que menciona a posterior devolução das Livrarias aos seus anteriores proprietários, o que teria ocorrido no ano de 1839. Estávamos já então na vigência de Alexandre Herculano como bibliotecário-mor e não admira que o novo regime constitucional quisesse restituir, aos seus apoiantes, os bens que lhes haviam sido confiscados na governação miguelista.

Alguns bilhetes (fichas) manuscritos, antigos, que não conseguimos datar com segurança, mencionam obras afetas a estas antigas livrarias. Pela similitude da grafia, poderemos supor tratarem-se de documentos dos anos trinta, inícios de quarenta, de oitocentos, correspondentes ao período de entrega daqueles espólios. Com base naquelas fichas manuscritas, e após pesquisa na Biblioteca da Ajuda, foi possível localizar na obra “La Devotion au Sacré Coeur de Notre-Seigner Jesus-Christ”, datada de 1750, o ex-libris de D. Helena Xavier de Lima, da Casa dos Marqueses de Ponte de Lima, o que nos faz questionar a entrega da totalidade das obras afetas às Livrarias dos “banidos”, ao tempo de D. Miguel. 



No que respeita aos bilhetes que referem “Calhariz” como proveniência, reportando-se essencialmente a manuscritos, ainda não foi possível localizar nenhum exemplar, pelo que a sua devolução poderá ter ocorrido com a instituição do Regime Constitucional.

Em próximos artigos, daremos continuidade à divulgação de informação sobre este período da história da Biblioteca da Ajuda, até ao momento, menos conhecido.

 MMB



[1] Santos, Mariana A. Machado Santos, Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, Coimbra, 1965.

[2] Santos, Mariana A. Machado Santos, Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, Coimbra, 1965, pág.. 14.

[3] O Catálogo de 1711, ainda era vivo o Conde, existe na Universidade de Coimbra. Inclui manuscritos do Visconde de Vila Nova de Cerveira.

[4] Idem, Idem.

[5] Conforme se pode ler em nota manuscrita, inserta na pasta D 288: “A Livraria jesuítica que estava depositada no Collegio dos Nobres desde a extinção da Companhia, veio em grande parte para a Bibliotheca da Ajuda em 1832. (Apontamento extraído dumas notas bibliográficas de Rodrigo Vicente d´Almeida relativas ao Missal Bracharense, 1498)”.

[6] Santos, Mariana Machado, Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, Coimbra, 1965, pag.7. Segundo esta autora “O lugar para que Alexandre Herculano foi nomeado não era de bibliotecário, nem o de um director na vulgar acepção do termo: era o de uma espécie de superintendente, como que inspector, das bibliotecas dos Paços Reais da Ajuda e Necessidades e do Real Gabinete de Física, anexo à Biblioteca da Ajuda.” Herculano desempenhou funções de 1 de Agosto de 1839, a 13 de Setembro de 1877, atravessando, à frente da Biblioteca Real, o reinado de D. Maria II, a regência de D. Fernando II, e ainda os reinados de D. Pedro V e de D. Luís.

[7] O Padre José Manuel de Abreu Lima foi demitido por miguelista, tendo morrido no ano de 1835 em casa dos Condes de Redondo no exercício de funções eclesiásticas. Inocêncio da Silva, no seu Diccionário Bibliográfico Português, Tomo V, 1860, refere que o P.e José Manuel de Abreu e Lima perdeu o lugar “em consequência da notavel afeição que mostrára ao sr. D. Miguel e ao seu governo”.

[8] BA Arquivo interno ms. pastas D 288 e D 291.

[9] BA Arquivo interno ms. pasta D 288.

[10] BA Arquivo interno ms. pasta D 291. Segundo Mariana A. Machado Santos, obra cit., pag.6, o P.e António Nunes fora nomeado Encarregado da Real Livraria do Paço da Ajuda em 11-V-1837, sucedendo ao Conselheiro Doutor António Nunes de Carvalho que estivera no cargo menos de um ano.

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