Dia da Mulher, 8 de março de 2023

A Biblioteca da Ajuda (BA), repositório de um acervo patrimonial muito rico e diverso, possui um número significativo de obras que permite evocar mulheres/damas que se destacaram no seu tempo, apesar de menos reconhecidas na actualidade.

Os estudos de género têm vindo a despertar a atenção do meio académico já que o quase apagamento da acção das mulheres nas narrativas históricas, não é consentâneo com o papel que algumas desempenharam nos contextos sociais, políticos e culturais em que viveram, nos finais do Antigo Regime e mesmo ao longo de todo o século XIX.

Nesta ocasião, escolhemos evocar três figuras distintas, activas nos finais de setecentos, no momento de ruptura histórica marcado pela Revolução Francesa de 1789 e pela queda da monarquia francesa, pelas invasões napoleónicas e pela difusão dos ideais republicanos, sendo que neste primeiro texto apenas falaremos de duas delas e da sua presença na BA. Contemporâneas, e com destinos igualmente atribulados, uma, Leonor da Fonseca Pimentel (1752-1799) e outra, Mary Wollstonecraft (1759-1797), foram pioneiras na afirmação da independência feminina, tendo-se salientado, enquanto intelectuais, por abrirem vias até aí vedadas ao seu género, quer por pugnarem pela defesa de um acesso mais amplo das mulheres a algum tipo de educação formal[1], quer pelos seus modos de vida, marcados pela participação cívica, e pelos ideais de liberdade e de autonomia face à tutela masculina.

E por fim, nesta invocação não poderíamos deixar de mencionar D. Leonor de Almeida (1750-1839), Condessa de Oyenhausen, futura Marquesa de Alorna, aristocrata que ao longo de uma existência plena de incidentes revelou determinação, capacidade de reagir positivamente às adversidades, espírito culto e independente, cuja curiosidade intelectual, criatividade literária e “protecção litteraria[2]” com que favoreceu autores como Alexandre Herculano, marcaria a sociedade portuguesa, e a história da cultura do seu tempo. A ela dedicaremos o próximo texto.

   Leonor da Fonseca Pimentel Chaves[3]

Leonor da Fonseca Pimentel. De Leonor da Fonseca Pimentel possui a Biblioteca da Ajuda um interessante manuscrito “La Fuga in Egitto Oratório Sagro dedicato a S.A.R. D. Carlotta Borbone, Principessa del Brasile[4], datado de 1792. Apesar de dedicada a D. Carlota Joaquina (1775-1830), esta peça, a ser musicada, não consta do Catálogo da Livraria[5] da soberana, elaborado no ano seguinte ao da sua morte, em 1831.

Portuguesa, nascida em Roma, escritora, jornalista, erudita, Leonor da Fonseca Pimentel foi bibliotecária de Maria Carolina de Habsburgo (1752-1814), Rainha das Duas Sicílias, sendo “uma das mulheres mais celebradas do seu tempo”. O seu destino, porém, revelar-se-ia trágico.

Aderindo ao partido republicano, após a chegada das tropas francesas a Nápoles, dirige, naquela cidade, o jornal O Monitor. Alcançando cargos de prestígio e ofícios raros para uma mulher, Leonor, contudo, não escapa ilesa à queda da efémera República napolitana, à qual aderira com entusiasmo. Caindo em desgraça, foi presa, condenada e executada, naquele mesmo ano de 1799.

No campo da escrita, “depois do soneto, o género literário a que a jovem Leonor da Fonseca Pimentel mais recorre[ra]”, fora a “poesia para música”[6], redigindo “quatro cantatas e uma oratória”, sendo esta última, a que dedica a D. Carlota Joaquina, no ano de 1792. Talvez não tivesse sido irrelevante, por aqueles anos, o facto de a então Princesa do Brasil ser sobrinha da rainha Carolina, na ocasião, sua protectora, já que, às autoras, face à dificuldade de acesso ao mercado editorial, era vantajosa a tutela mecenática, para a participação num campo, essencialmente, masculino.

 













La Fuga in Egitto Oratório Sagro dedicato a S.A.R. D. Carlotta Borbone, Principessa del Brasile, assinado “Da D. Eleonora de Fonseca Pimentel Chaves, Napoli 1792”[7].


Não deixa de ser interessante este tributo de uma autora caraterizada como uma “Alma irrequieta, 
combativa, dominada pela filosofia e pela utopia”[8], a uma princesa reconhecidamente implicada nos processos de criação artística na corte portuguesa, mas que se colocaria, após os anos da Revolução Francesa, nos antípodas das escolhas políticas dos anos finais de Leonor. Duas personalidades ilustradas, e que apesar de comungarem crenças religiosas profundas[9], seguiriam trajectórias políticas opostas.


   Mary Wollstonecraft por John Opie (1797)[10]

Mary Wollstonecraft. Escritora, pioneira de uma escrita no feminino, tal como Leonor, teria uma vida recheada de incidentes e de infortúnios. A estes, responderia com a criatividade literária que a levou a redigir inúmeros textos na defesa dos direitos das mulheres, ora em ensaios, ora na forma de novelas de tom moral, ora em forma de cartas de pendor sentimental. A sua primeira publicação Thoughts on the education of Daughters: With Reflections on Female Conduct, in the more Important duties of life (1787) é, no título, eloquente quanto ao objectivo da defesa da causa da educação formal das raparigas; seguindo-se, entre outras edições, A Vindication of the Rights of Men, em 1790; A Vindication of the Rights of Woman, no ano de 1792; An Historical and Moral View of the Origin and Progress of the French Revolution, em 1794; e, Letters Written During a Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark, em 1796[11]. Este último livro, em forma epistolar, parecia ir ao encontro dos interesses dos “leitores setecentistas pelas narrativas de viagem – imaginárias ou reais, escritas por personagens inventadas ou por figuras notórias, instaladas entre a ficção e a reportagem, a crítica social e o aprendizado do mundo”[12],  alcançando a autora, com este tipo de escrita, um enorme sucesso editorial.

Se nas obras iniciais, em forma de ensaios, o lado racional prevalecera, as Cartas (…), na forma “plausível” como Wollstonecraft equilibrara a “reflexão racional e expressão autêntica dos sentimentos e das sensações”[13], inauguravam um estilo literário sentimental que abriria as portas à literatura romântica. Tal como a sua quase contemporânea napolitana, Mary morrerá jovem, após o nascimento de sua segunda filha.

Extracto das Cartas de Maria Wollstonecraft, relativas À Suécia, Noruega, e Dinamarca e huma breve notícia de sua vida oferecidos ao Bello Sexo Portuguez, Lisboa, 1806. BA 20-II-36.

A BA possui no seu acervo a obra Extracto das Cartas de Maria Wollstonecraft, relativas À Suécia, Noruega, e Dinamarca e huma breve notícia de sua vida oferecidos ao Bello Sexo Portuguez, por Henrique Xavier Baeta, datada de 1806 e que integra o Catálogo da Livraria de D. Carlota Joaquina, demonstrando uma atenção, por parte da soberana, à actualidade literária, e à escrita no feminino. Na introdução, o médico-autor apela a uma ideia cara ao Século das Luzes, isto é, a defesa da educação como modo de alcançar o progresso social, para o qual, o papel das mulheres como primeiras pedagogas de seus filhos, seria fundamental. Tal asserção leva-o a questionar “(…) como será a mulher ignorante capaz de educar seus filhos?”, contrariando as ideias de Rousseau, que cita, defendera no seu Emílio que “Aquellas que passão a vida trabalhando para ganharem o sustento, limitão suas idéas ás do trabalho e do lucro, e todo o seu entendimento como que reside nas pontas dos dedos”[14], afastando-as de cargos e funções públicas. Num tempo de acesos debates quanto ao papel social da mulher que dominaram setecentos, não deixa de ser questionável e contraditório com as ideias de "progresso social", o papel que alguns filósofos da Ilustração destinavam às mulheres.

Henrique Xavier Baeta, no seu prólogo, afastando-se da influência de Rousseau, enaltece a memória de Wollstonecraft, “a qual declarando-se huma firme defensora dos direitos das mulheres, assim as convida a exercitarem sua razão”, citando a autora - “se a sabedoria se faz desejável por si mesma, se a virtude, para merecer este nome, se deve apoiar nos conhecimentos, procuremos fortificar o espirito pela reflexão, até que a nossa cabeça equilibre o coração; não limitemos todos os pensamentos ás triviais occurrencias do dia, ou todo o saber ao simples exame dos corações dos amantes ou maridos (…)”, numa afirmação plena do direito das mulheres a se cultivarem, não só por serem as primeiras mestras de seus filhos, mas para seu enriquecimento próprio e satisfação pessoal[15].

Muito deve a mulher do século XXI ao papel desempenhado por estas damas, no campo social, político e cultural, enquanto pioneiras na afirmação da cultura no feminino.

MMB 





Thesouro de Meninos / Pedro Blanchard. Lisboa, 1817

BA 35-II-56

No Frontispício gravura representando as figuras feminina e masculina, em pose atenta, face a uma figura masculina que exibe um livro. Ao fundo estantes com livros e um mapa na parede, no que parece representar uma igualdade de plano face à aprendizagem. 

(Continua)


[1] PIMENTEL, Leonor da Fonseca, “La Fuga in Egitto Oratório Sagro dedicato a S.A.R. D. Carlotta Borbone, Principessa del Brasile”, ms. BA 54-X-11 (27).

[2] HERCULANO, Alexandre, Opusculos, Tomo IX, 2ª edição, Lisboa, 1898, p. 277. BA 119/120-B-91.

[3] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Leonor_da_Fonseca_Pimentel. Consulta em 28.02.23.

[4] BA 54-X-11 (27). Ver PEREIRA, Sara Marques, «“La Fuga in Egitto” - Oratória Sagrada oferecida a D. Carlota Joaquina de Bourbon (1792, Pretexto de um texto – Nota Histórica», in Leonor da Fonseca Pimentel . A Portuguesa de Nápoles (1752-1799), coord. SANTOS, Maria Teresa; PEREIRA, Sara Marques, Livros Horizonte, 2001, p. 115-135, no qual a autora transcreve o texto da Oratória.

[5] BA 51-XIII-7.

[6]  URGNANI, Elena, “A obra literária de Leonor da Fonseca Pimentel”, in Leonor da Fonseca Pimentel . A Portuguesa de Nápoles (1752-1799), coord. SANTOS, Maria Teresa; PEREIRA, Sara Marques, Livros Horizonte, 2001, p. 163.

[7] BA 54-X-11 (27).

[8] OLIVEIRA, Américo Lopes; VIANA, Mário Gonçalves, Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis, Lello § Irmão, 1967, pp. 1063-1064.

[9] Ver URGNANI, Elena, obra cit., 2001, p. 171.

[10]  Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mary_Wollstonecraft. Consulta no dia 28.02.23.

[11] MARQUES-PUJOL, Mariana Teixeira, Pensar o sensível: o exemplo das Cartas Escritas Durante uma Breve Residência na Suécia, na Noruega and Denmark (1796), by Mary Wollstonecraft, Revista Enunciação- ISSN: 2526-110x- 2º semestre de 2017 – vol. 2 – Nº 2 – pp. 57-75, p. 62.

[12]  Idem, Idem, p. 67.

[13] Idem, Idem, p. 68.

[14]  BAETA, Henrique Xavier, Extracto das Cartas de Maria Wollstonecraft, relativas À Suécia, Noruega, e Dinamarca e huma breve notícia de sua vida oferecidos ao Bello Sexo Portuguez, Lisboa, 1806, p. VI. BA 20-II-36.

[15] Idem, Idem, pp. XVII-XVIII.

Sem comentários: