Um manuscrito e os seus impressos: um diálogo dos “Jesuítas na Ásia"

Uma das colecções mais conhecidas e há mais tempo trabalhadas da BA, os 61 códices dos “Jesuítas na Ásia”, continua a proporcionar aos seus leitores algumas (boas) surpresas. A que hoje partilhamos aqui é o “encontro” com um documento que, por não estar referido ao seu A. no guia da colecção, tem tido uma ‘vida discreta’ no interior dos mais de 9.000 documentos que compõem a colecção e é ele o texto do P. Prospero Intorcetta “Scientia sinarum politico-moralis” [Ciência político-moral chinesa] com a tradução latina do Zhong Yong ou, na transliteração do A., Chum Yum, “O médio constante”, numa tradução directa do latim ou a “Doutrina do Meio” na sua tradicional referenciação em português.

Um dos 4 textos fundamentais do Confucionismo foi, a par dos Analectos [Lún Yun] e do Grande Ensinamento [Da Xué], a base da aprendizagem e conhecimento da língua-cultura chinesas dos missionários jesuítas da China, principalmente após a fixação da missão em Pequim com Ricci e a supervisão de Valigniano. Os 4 clássicos confucionistas são traduzidos como forma de aprendizagem da língua e cultura chinesas pelos missionários e simultaneamente considerados como veículo de transmissão das ideias cristãs (após Ricci).


É neste contexto que o P. Prospero Intorcetta (1626-1696) que chega à China em 1659, com o P. Phillipe Couplet, ocupando-se da missão de Jiangnan (actualmente Nanchang, Prov. de Jiangxi) se dedica ao estudo da filosofia chinesa, língua que vem a dominar em alguns anos. Precedida por apontamentos sobre os 4 livros do Confucionismo (1662), é publicada uma pequena obra impressa com a tradução latina do Zhōngyōng, uma pequena biografia de Confúcio e uma introdução ao confucionismo e seus intérpretes que constituem a primeira divulgação em língua europeia do pensamento filosófico chinês dominante, antecedendo em 18 anos a grande obra colectiva jesuíta Confucius sinarum philosophus sive scientia sinensis latine exposita, publicada em Paris, em 1687 e que obteve enorme sucesso (BA 39-XIV-1).

Este texto inicial de Intorcetta, impresso parcialmente em Cantão e a maior parte em Goa, tem por título geral Sinarum Scientia politico moralis e é actualmente um impresso muito raro em bibliotecas europeias. Uma grande parte da tradução e comentários será depois integrada e publicada no Confucius… embora tenha conhecido uma publicação em francês, sem os caracteres chineses da edição de Goa, numa recolha de Relatos de Viagens publicada em 1672, por Mechisedet Thevenot, a partir de fontes manuscritas, europeias e orientais, inéditas, com uma tradução francesa da biografia de Confúcio (BA 95-VI-17, vol. 2).

     
É a cópia manuscrita da edição goesa do texto do P. Intorcetta que integra as fls. 362-397, do códice 49-V-15, mantendo os espaços para a fixação dos caracteres chineses que a edição francesa e a latina de Paris, mais conhecida, não incluem.*
A cópia jesuíta apresenta-se, assim, como uma alternativa em solo nacional para o contacto com uma das primeiras traduções em latim dos textos confucionistas e uma das primeiras fontes da sinologia europeia. A sobrevivência deste texto na sua cópia do séc. XVIII que integra os Jesuítas na Ásia, impôe-se como uma das formas mais directas de acesso ao universo cultural e intelectual em que se iniciou o intercâmbio da Europa iluminista com a milenar civilização chinesa e a intercomunicação das suas categorias de pensamento, por recurso às fontes mais próximas do mesmo.

Não havendo nenhuma informação directa sobre se o original seria o texto impresso em Cantão e Goa, o manuscrito autógrafo do P. Prospero Intorcetta, ou outra cópia deste original guardada no arquivo do Colégio da Madre de Deus, em Macau, reafirma-se a relevância desta colecção da Biblioteca da Ajuda e a validade da afirmação de Francisco Cunha Leão: “A obtenção de treslados ou a simples transferência de documentos originais proporciona como que um rito de passagem na existência material e subjectiva dos documentos visados, na medida em que, como no caso presente do núcleo original dos Jesuítas na Ásia, o documento de arquivo, assumindo a forma de treslado em maços e códices, «transforma-se» em manuscrito conservado em biblioteca (...). Supomos que adquiriu, nesta acepção, pela sua antiguidade a natureza de documento literário e histórico, (...) coexistindo materialmente a par dos espécimes impressos.” [Jesuítas na Ásia : Catálogo e Guia, Lisboa/Macau, 1998, vol. 1, p. XI].


* Sobre as traduções confucionistas do P. Prospero Intorcetta e descrição do impresso de Goa, veja a lição do Prof. Vincenzo di Giovanni em Atti della Accademia di scienze, lettere e arti di Palermo ..., Volume 4 , acessível em Googlebooks aqui. 

FG@BA

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