Subsídios para a História da Biblioteca da Ajuda: O reinado de D. Miguel (1828-1834): Parte II


Damos, neste artigo, continuidade à divulgação de informação relativa à História da Biblioteca da Ajuda, com especial ênfase para o período relativo ao reinado de D. Miguel (1828-1834).

[BA. 131/132-H-30, p. 175]
 







Nas primeiras décadas do século XIX, aquando do regresso da Família Real do Brasil, a Real Biblioteca da Ajuda encontrava-se depauperada de obras relevantes, e longe do esplendor com que deveria ser “mantida e conservada (…) a Real Bibliotheca Particular”, segundo se lia no diploma assinado pelo Conde de Basto [1], em nome do Rei, datado de 6 de Fevereiro de 1832 e publicado na Gazeta de Lisboa, nº 36, desse mesmo ano. A principal causa desse empobrecimento fora o envio para o Brasil dos livros que anteriormente a compunham. O objectivo de inverter a situação motivou um conjunto de iniciativas de que aquele diploma, não sendo o primeiro, era um testemunho.

O envio dos duplicados da Biblioteca Pública para a Biblioteca de Sua Magestade no Real Paço da Ajuda. Ainda no reinado de D. João VI, pelo diploma de 30 de Dezembro de 1824, determinara-se que fossem “remetidos à Bibliotheca Pública, de qualquer Officina Typografica, hum Exemplar de todo o Escripto que se imprimir nestes Reinos”, configurando o que se viria a designar como “depósito legal” [2]. A esta medida, que visava essencialmente o enriquecimento da Biblioteca Pública, sucedeu outra, de especial alcance, que estabelecia, pelo Aviso régio de 5 de Novembro de 1825, que da Real Biblioteca Pública fosse enviado para a Real Biblioteca Particular “um exemplar de todas as obras que houver duplicados, entrando” naquele número “o Risco do Edifício da Batalha, e um exemplar de todas as obras dos Authores Classicos Gregos, Romanos e Portuguezes” [3], conforme se podia ler naquele documento.

O propósito daquela disposição régia era o de promover a dignificação e o enriquecimento de uma instituição tão relevante não só para a ilustração, como para a representação das pessoas reais, como era a Real Biblioteca Particular, assim então denominada a livraria do Paço da Ajuda. Outra das medidas empreendidas, com o mesmo desígnio, traduziu-se no confisco das Bibliotecas dos opositores políticos, os “banidos”, “reos ausentes”, isto é, os liberais, opositores do governo “legitimista” de D. Miguel.


As bibliotecas integradas na Real Biblioteca Particular em consequência do “banimento” dos seus proprietários. Os catálogos manuscritos datados de 1831, que se encontram na secção dos manuscritos da Biblioteca da Ajuda, apontam para a incorporação de diversas livrarias, na então Real Biblioteca Particular. Umas, em resultado de doações, como as da Princesa Maria Francisca Benedita (1774-1833) [4], e da Imperatriz-Rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830) [5] , ou as de Francisco Maria Angelleli [6] , e de Joaquim de Sá Braga [7] ; outras, em consequência do confisco, determinado pelo governo miguelista, sobre a propriedade de algumas das principais figuras, emigradas, do movimento liberal. Relacionadas com estas, acham-se os catálogos manuscritos das livrarias de Cândido José Xavier, constituída por 389 livros [8] , do “Conde de S. Paio”, contemplando 784 livros e a do Conde de Vila-Flor, com 851 livros [9], bem como alguma documentação avulsa inserta na pasta, do arquivo interno, relativa à gerência de José Manuel Abreu Lima (1825-1834)[10] .         


A consulta do “Acordão da Alçada do Porto contra os Réos Ex Marquez de Palmella e outros em 1829[11], elucida-nos sobre a condenação a que foram sujeitos, naquele ano, os “réos ausentes”, de entre os quais se destacava o então “Marquez de Palmella”, caracterizado como “maligno e insidioso chefe”, que transformara o palácio da Legação Portuguesa em Londres, em “infame e vergonhosa officina de conspirações”. De acordo com a “Devassa e Appensos”, eram os réus “impelidos pelo iniquo e implacável odio” que votavam ao senhor D. Miguel, o que os levara a que, vendo “talvez o próximo castigo de seus insidiosos procedimentos”, terem saído “precipitada ou clandestinamente destes Reinos, com diversos pretextos, mas com a premeditada malicia de inculcar ás nações estrangeiras a existência de huma perseguição iminente”. Assim se descrevia o intento daqueles opositores políticos, no mencionado Acordão.

Eram então citados como “réos ausentes”, o “Marquez de Palmella D. Pedro de Sousa e Holstein [12], Conde de Sampayo Manoel Antonio de Sampayo Mello e Castro Torres e Luzignano [13], Conde de Villa Flor Antonio José de Souza Manoel de Menezes Severim de Noronha [14], Conde de Calhariz D. Alexandre Domingos de Souza e Holstein [15], Conde da Taipa D. Gastão da Camara [16], João Carlos de Saldanha Oliveira e Daun[17] que foi Marechal de Campo graduado, Cândido José Xavier que foi Tenente Coronel do Exercito (…)”, entre outras personalidades.

Este documento permite-nos estabelecer uma relação entre os condenados pela sentença de 11 de Setembro de 1829 e algumas Livrarias incorporadas na Real Biblioteca Particular, cujos catálogos atrás mencionámos. O acórdão ao citar cada um dos acusados do “crime de Lesa Magestade”, de rebelião e dissidência, abria o caminho ao confisco das propriedades daqueles sentenciados. Ausentes do Reino, “banidos” de suas prerrogativas, os acusados deixavam à mercê da Justiça os meios de os sujeitar a sanções.

E o confisco de seus bens, de entre os quais as Livrarias particulares, foi uma das penas infligidas, como prova a documentação existente na Biblioteca da Ajuda. O caso da Livraria do futuro Marquês de Sampaio é exemplar. Em uns folios, não datados, do Arquivo Interno da BA, a que já aludimos, relativos a uma lista de livros, o seu proprietário é identificado como “desembargador, banido, Sampaio”[18]. No catálogo, datado de 1831, da “Livraria do Conde de São-Paio”[19], são inventariadas 784 obras dos séculos XVI-XIX, nacionais e estrangeiras, sobre temática variada.

Outro catálogo, existente na mesma secção de manuscritos da BA, refere-se à Livraria de Cândido José Xavier [Dias da Silva] 1769-1833, (Cod. 51-XIII-1), destacado liberal, “Tenente Coronel do Exército”, conforme o Acordão de 1829[20], condenado à morte por traição, e que foi, posteriormente, secretário particular de D. Pedro IV. Datado de 1831, inclui 389 obras dos séculos XVII-XIX, nacionais e estrangeiras, predominantemente sobre engenharia e assuntos militares. Na contracapa, a lápis, podemos ler “vide catalogo de 1829 desta Livraria organizado em 1829 por ocasião do confisco (secretaria)”.

   
 
 
Ainda relacionado com esta temática dos confiscos das livrarias dos exilados liberais encontramos, em pasta do Arquivo interno[21], a referência à Livraria do Conde de Linhares, em 1832, sendo o auto de entrega redigido nos seguintes termos - “O Solicitador do Real Fisco dos Auzentes do Reyno faz entrega na Real Bibliotheca de Nossa Senhora da Ajuda ao Bibliothecario Mor o Ill.mo Padre Joze Manoel de Abreu e Lima de sessenta e dois caixotes de livros constantes do Cathalogo que os acompanha pertencentes a Livraria do Ex.mo Auzente Conde de Linhares [22] em que se manda remeter para a ditta Bibliotheca, e polla autorização que o mesmo teve por Acordão da Rellação de q. cobrara recibo da ditta entrega para se juntar aos Autos Respectivos. Lx.ª 14 de Fevereiro de 1832. O Soll.or Ant. M.el Cae.to Cª e S.ª ”.

Segue relação completa - “Relação dos Livros da Livraria do Ex.mo Conde de Linhares entregues na Real Bibliotheca de Sua Magestade”.

Alguns bilhetes manuscritos antigos constituem outra fonte importante para o estudo desta temática. Em alguns foi possível encontrar títulos e apelidos relacionáveis com estas figuras de proa do movimento liberal, cujas livrarias foram então arroladas.
A eventual devolução das mesmas após 1834, com a instituição do Regime Constitucional, não impede a localização, na Biblioteca da Ajuda, de obras referenciadas quer nestes mesmos inventários, quer nas citadas fichas manuscritas.

A leitura da relação dos implicados na Alçada de Outubro de 1829, faz-nos concluir serem as fichas, cuja proveniência se reporta a “Calhar.”, relacionadas com a eventual proveniência de obras da Casa do Calhariz, em Sesimbra, por ser D. Pedro de Sousa e Holstein o 13º administrador do morgado do Calhariz, já que o seu filho, 1º conde de Calhariz, D. Alexandre Domingos de Souza e Holstein (1812-1832), morre com 20 anos, em Ponta Delgada, no decurso das manobras das forças liberais contra o regime absolutista, não tendo chegado a ter casa própria.

A não localização de obras levara-nos, em anterior texto, a equacionar a possibilidade de, com a instituição do Regime Constitucional, ter ocorrido a devolução da totalidade dos livros anteriormente confiscados. No entanto, recentes descobertas, fazem-nos pôr de parte tal cenário.

A referência a estas obras será tema de próximo artigo.

Mafalda Magalhães Barros                                                                                                                             (...)



[1]José António de Oliveira Leite de Barros (1749-1833), Conde de Basto pelo Decreto de D. Miguel de 12 de Janeiro de 1829, foi Ministro do Reino durante os reinados de D. João VI e D. Miguel.
[2] Idem, Idem.
[3] Ribeiro, José Silvestre, Apontamentos Históricos sobre Bibliotecas Portuguesas (...). Universidade de Coimbra, 1914. [Aqui]
[4] BA. 51-XIII-3
[5] BA. 51-XIII-7
[6] BA. 51-XIII-6
[7] BA. 51-XIII-2
[8] BA. 51-XIII-1
[9] BA. 51-XIII-5
[10] Pasta, arquivo interno, da Gerência de José Manuel Abreu Lima (1825-1834).
[11] BA. 97-V-23 (28).
[12] D. Pedro de Sousa e Holstein, (1781-1850), 13º administrador do morgado do Calhariz, entre outros títulos, foi 1º Conde (11-04-1812), 1º Marquês de Palmela e feito Conde de Calhariz o seu primogénito (03-06-1825), 1º Duque de Palmela (04-04-1833). Diz F. Bonifácio que “não havia lugar
  para ele no Portugal de D. Miguel, que de resto já lhe confiscara os bens”, Memórias do Duque de Palmela, D. Quixote, 2011, pag.36.
[13] 2º Conde e 1º Marquês de Sampaio, (1762-1841). Tomou parte activa na primeira tentativa de conquista da Terceira, sendo julgado e condenado à morte, por sentença a 9 de Abril de 1829, a sua família vê os bens sequestrados. Viveu o tempo de exílio na Bélgica, sendo nomeado por Rei D. Pedro IV como mordomo-mor da jovem Rainha D. Maria II. Exerceu este cargo até à sua morte.
[14] 7º Conde, 1º Marquês de Vila Flor e 1º Duque da Terceira, (1792-1860).
[15] 1º Conde de Calhariz, D. Alexandre de Sousa e Holstein (Cádis 1812- Ponta Delgada 1832).
[16] D. Gastão da Câmara Coutinho Pereira de Sande (1794-1866), 1º Conde da Taipa, em 1823.
[17] Futuro 1º Duque de Saldanha, (1790-1876).
[18] BA Arquivo interno ms. pastas D 288 e D 291. Sebastião José de São Payo de Melo e Castro, segundo filho do 1.º Conde de São-Paio. Vid. Marquês de São-Paio. Para a História dos "Setembrizados": O Desembargador Sebastião José de São-Paio, in: Anais da Academia Portuguesa da História, II série, vol. 17. - Lisboa, 1968 (BA 215-VIII-28).
[19] BA. 51-XIII-4
[20] BA. 97-V-23 (28).
[21] In Pasta da Gerência de José Manuel Abreu Lima (1825-1834). Doc.s avulsos sem catalogação Cofre BA.
[22] D. Vitório Maria Francisco de Sousa Coutinho (1790-1857), 2º Conde de Linhares. Era cunhado do Duque de Palmela, D. Pedro de Sousa e Holstein.

1 comentário:

maria holstein beck campilho disse...

muito interessante ,gostei de saber que a biblioesca Palmella foi integrda nerta interessante astuação.