O regresso ao antigo enquanto expressão de modernidade
As escavações dos sítios
arqueológicos de Herculano e Pompeia[1],
situados nas imediações de Nápoles, a partir de 1738, marcaram de forma
indelével o conhecimento sobre a Antiguidade Clássica, provocando uma revolução
no gosto, nas ideias estéticas e na prática artística, na Europa de setecentos.
Na arquitectura assistir-se-á a um
renovado interesse pela tratadística e pelas formas clássicas, o mesmo
sucedendo na decoração interior, que se liberta das pesadas tapeçarias e
damascos, optando pelo revestimento mural com pinturas a fresco, inspiradas nas
descobertas em Pompeia, e por isso ditas “pompeianas”, representando motivos vegetalistas
estilizados, perspectivas arquitectónicas, figuração humana e animal e da
mitologia clássica.
Depois de a cultura da
Antiguidade ter despertado o interesse dos artistas e intelectuais do Renascimento,
para os quais a viagem a Roma era um desígnio, a descoberta das villas soterradas pelo Vesúvio (no ano
79 da era cristã), e o início dos trabalhos arqueológicos naqueles sítios, sob
patrocínio de Carlos VII (1716-1788), então Rei das Duas Sicílias, suscitará a
curiosidade de uma elite para a qual a viagem era sinónimo não só de lazer,
como de descoberta e aprendizagem.
A morte, sem descendência, do
irmão, Fernando VI (1713-1759), casado com Maria Bárbara de Bragança
(1711-1758), determinará o regresso a Espanha de Carlos de Bourbon, que ocupará
o trono, de 1759 a 1788, como Carlos III de Espanha. Apesar de afastado geograficamente,
o monarca não deixará, no entanto, de dar continuidade à sua acção mecenática,
e ao patrocínio das escavações arqueológicas dos sítios de Pompeia e Herculano,
determinantes para a descoberta de um antigo arquitectónico, e por uma espécie
de “regresso à fonte”, cuja divulgação será estimulada pelos viajantes, e
assegurada pela difusão, através das edições de livros e de gravuras,
suscitando, então, uma admiração e curiosidade universais.
De entre as publicações dedicadas ao assunto destaca-se a obra monumental Le Antichita di Ercolano Esposte, patrocinada por Carlos de Bourbon e impressa em Nápoles, a partir de 1757, em oito volumes. Desta, dispõe a Biblioteca da Ajuda de sete volumes (BA 53-XII-17-23), os editados entre 1757 e 1779[2]. Falta, neste conjunto, o volume oitavo - Le lucerne ed i candelabri d´Ercolano e contorni incise com qualche spiegazione, editado apenas no ano de 1792 e em cuja portada surge o retrato de Fernando I (1751-1825), filho daquele monarca e que era agora o rei das Duas Sicílias.
Esta obra fora concebida e editada
com o propósito de divulgar os achados arqueológicos e de exaltar o papel de Carlos
III, cujo retrato é apresentado no verso de um folio inicial volante, como rei de Espanha e das Índias, e enquanto
mecenas e patrono, na sua ligação intima àquele empreendimento.
Nesta representação, Carlos III surge coberto de atributos áulicos e rodeado, no canto inferior direito, de utensílios relacionados com as escavações arqueológicas, tais como pás, picaretas, utilizados no desenterramento das villas, bem como de objectos ali revelados, nomeadamente moedas, ânforas, esculturas, rolos de papiro[3], lápides e inscrições referentes a Herculano, entre outros, que testemunham o seu envolvimento naquela descoberta.
No canto inferior esquerdo da
gravura ressaltam elementos de simbólica militar, alusivos ao poder das armas e
das vitórias régias nos campos de batalha, caros ao ethos de Antigo Regime.
Em síntese, uma retórica de
afirmação do poder régio que se firma não só na força das armas, mas, de igual
modo, na luz dos conhecimentos práticos, assentes na Arqueologia e na História,
apanágio de um monarca “ilustrado”.
Folio inicial volante, retrato de Carlos III, Rei de Espanha e das índias, numa alegoria ao poder terreno do monarca, o qual, para além da extensão territorial, inclui uma dimensão temporal, pois o seu domínio exercia-se, de igual modo, sobre o passado, de que os testemunhos arqueológicos de Herculano são uma demonstração.
Le Antichita di Ercolano Esposte..., Napoli: nella Regia Stamperia, 1755-1779.
BA 53-XII-17-23.
Assim, e paradoxalmente, da
iniciativa do soberano que representara como poucos o absolutismo ilustrado e o
Ancien Regime, vai resultar uma
renovação do gosto e uma voga estética que será apropriada pelos herdeiros da
Revolução Francesa e do Império napoleónico[4].
Os estilos neoclássico e império vão opor ao barroco arquitectónico e
artístico, que até então melhor representara as aspirações espirituais do povo
católico, um novo enquadramento estético e arquitectónico que, no despojamento
formal e num regresso às origens, encontra o seu traço distintivo.
A divulgação. Com o objectivo de difundir o conhecimento sobre as
antiguidades, Carlos III patrocina, em 1752, uma primeira edição - El Prodromo delle Antichità d´Ercolano,
da autoria de Ottavio Antonio Baiardi, que por excesso de erudição, acabará por
se revelar um fiasco, segundo Gomez de Lliaño. Dessa “falha” inicial resulta a
decisão de criar a Reale Accademia
Herculanense, no ano de 1755, à qual é atribuída a missão de escolher
desenhadores e gravadores, para a elaboração de ilustrações, bem como de
autores para a redacção dos textos que deviam acompanhar aquelas, no sentido de
promover uma edição profusamente ilustrada dos achados arqueológicos, empresa
editorial que haveria de ser “monumental”, tal como os achados arqueológicos[5]
o foram.
Nesse mesmo ano será editado o único volume do Catalogo degli Antichi Monumenti Dissotterrti dalla Discoberta Citta di Ercolano per Ordine della Maesta di Carlo Re delle Due Sicilie (…)[6] que antecederá a edição dos restantes oito volumes. Daquele dispõe a Biblioteca da Ajuda de um exemplar (53-XII-24), com encadernação semelhante aos sete volumes, editados nos anos sequentes, de Le Antichita di Ercolano Esposte....
Sendo de iniciativa régia, os
encargos de composição e edição foram suportados pelo monarca e a sua difusão
limitada às ofertas do rei, quer a familiares, quer a instituições académicas,
ou a bibliotecas universitárias e conventuais.
Le Antichita di Ercolano Esposte... -
a sua recepção em Lisboa
Refere Gómez de Liaño o facto de,
em finais de 1759, circular o rumor da tentativa da Inquisição de Lisboa de
impedir a circulação do primeiro volume de Le Antichita di Ercolano Esposte..., “em
consequência do caracter lúbrico e pagão de muitas ilustrações”[7].
No entanto, os exemplares da Biblioteca da Ajuda, segundo rótulo na contracapa,
são provenientes do Mosteiro de S. Vicente de Fora, pelo que existiriam na
Livraria daquela casa conventual, o que nos permite questionar muita da
informação sobre o papel da censura, no final do Antigo Regime. Na realidade,
como escreve Fernanda Campos, “a verdade é que a história das bibliotecas
religiosas reflecte o ambiente sócio-cultural, religioso e político em que as
instituições regulares foram participando”[8],
de que os livros que as constituíam são testemunho.
A obra não consta do Catálogo de livros defesos neste Reino,
desde o dia da Criação da Real Mesa Cençoria athé ao prezente (1768-1814)[9],
o que se torna compreensível face à escassa possibilidade de circulação de uma
edição com as características daquela, bem como o facto de ser da iniciativa de
um monarca que era tio materno da rainha D. Maria I (1734-1816)[10]
e avô daquela que seria Princesa do Brasil, a partir de 1788, D. Carlota
Joaquina de Bourbon (1775-1830).
Os exemplares da Biblioteca da Ajuda
O modo como Le Antichita di Ercolano Esposte...
foi incorporado na Biblioteca da Ajuda é, actualmente, uma incógnita. Teriam os
livros sido recolhidos por Alexandre Herculano (1810 – 1877), então
bibliotecário régio, no depósito criado no Convento de S. Francisco da Cidade,
na sequência da extinção das Ordens Religiosas, em 1834, de modo a suprimir
falhas da Biblioteca Real da Ajuda, que após o regresso da Família Real do
Brasil, em 1821, ficara muito desfalcada? Disporia a Livraria do antigo Paço
Real da Ajuda, daquele conjunto? Teria o mesmo sido levado para o Brasil, com a
restante Livraria Real? Questões para as quais não dispomos de respostas
imediatas.
A biblioteca do mosteiro de S.
Vicente de Fora (1147-1834), em Lisboa, de onde este conjunto de livros é
proveniente, corresponderia, em 1822, segundo os critérios de Adriano Balbi, no
seu Essai statistique [aqui], que Fernanda
Campos cita, como “autoridade para a avaliação da dimensão de certas
bibliotecas religiosas”, “uma boa biblioteca”, já que disporia, em volumes, de
“22000 (dos quais 4000 duplicados)”[11].
Escreve aquela autora que os seus
livros mais antigos têm marca de posse manuscrita, passando no século XVIII a
utilizar um carimbo redondo, com monograma no centro e a legenda circundante
“BIBLIOTHECA DA R. CAZA DE S. VICENTE”[12],
o que corresponde aos ex-libris apostos na folha de rosto dos exemplares daquela
obra existentes da Biblioteca da Ajuda, e é conforme com a provável data de
incorporação daquela valiosa edição, naquela livraria conventual que só deverá
ter ocorrido entre o final de setecentos e inícios de oitocentos, isto é, antes
da extinção das ordens religiosas, em 1834.
A existência deste conjunto na
Biblioteca da Ajuda, antiga livraria régia, é mais uma prova da sua singularidade,
não só enquanto espaço arquitectónico, mas enquanto depósito de riquezas
bibliográficas, de entre as quais os exemplares de Le Antichita di Ercolano Esposte..., uma das mais importantes obras do
séc. XVIII dedicada à Arqueologia, são testemunho.
Em próximo texto se fará uma
abordagem à influência das gravuras insertas na obra Le Antichita di Ercolano Esposte..., em alguma da pintura mural do
próprio Palácio da Ajuda.
Mafalda Magalhães Barros
Biblioteca da Ajuda
[1] As
descobertas de Pompeia ocorrem em 1748, isto é, dez anos após as de Herculano,
em 1738.
[2]
53-XII-17, de 1757; 53-XII-18, de 1760; 53-XII-19, de 1762; 53-XII-20, de 1765;
53-XII-21, de 1767; 53-XII-22, de 1771; 53-XII-23, de 1779.
[3] Apud.
Liaño, Ignacio Gomez de, 2015, El Reino
de las Luces, Carlos III, entre el Viejo y el Nuevo Mundo, Alianza
editorial, Madrid, 2015, pág. 123.
[4] Liaño,
Ignacio Gómez de, obra citada, pág. 57.
[5] Idem, idem, pag. 79.
[6] BA
53-XII-24.
[8] Campos,
Fernanda Maria Guedes de, Para se achar
facilmente o que se busca : bibliotecas, catálogos e leitores no ambiente
religioso, século XVIII, 1ª edição, 2015, pág. 43. BA. 264-VI-41.
[9] Boletim da Biblioteca da Universidade de
Coimbra, vol. XXVI, Coimbra, 1964, pág. 118 e seguintes, BA. 211- VI-24.
[10] Carlos
III era irmão de Maria Ana Victória de Bourbon (1718-1781), mulher de D. José I
(1714-1777), rei de Portugal.
[11] Idem, Idem, pp. 92-93.
[12] Idem, Idem, pag.118.
Sem comentários:
Enviar um comentário