Camões e a BA: Teófilo encontra Camões

As armas, e os Barões assinalados,

Que da occidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana;

Em perigos, e guerras esforçados,

Mais do que promettia a força humana,

Entre gente remota edificaram

Novo reino, que tanto sublimaram:

(...)

Cantando espalharei por toda a parte,

Se a tanto me ajudar o engenho, e arte
.

“Os Lus.” do Morgado de Mateus (1817)

Cant. I, est. I e II

Estes versos iniciais dos Lusíadas epigrafam o sentido do post deste mês, da nova rubrica “Camões na BA”, na dupla dimensão (formal e material) do início ou começo, conceito que permitirá a evocação de Joaquim TEÓFILO BRAGA num espaço dedicado a Luís de Camões e à sua epopeia lusa. E porquê a escolha deste mês para a evocação de um “pensador e escritor em ação”, protótipo dos ideais de finais de oitocentos? Cumprem-se no dia 24 de fevereiro os 181 anos do seu nascimento (24 de fevereiro de 1843) e o ano de 2024 marca o centenário da sua morte (28 de janeiro de 1924).

Das múltiplas biografias e exegeses da obra camoniana, principalmente de Os Lusíadas e das Rimas, iniciadas logo no final do séc. XVI (nas eds. de final do séc. dos Lus. como anotações) e com expressão alargada a partir de 1624 (1) - há 400 anos exatamente -, a atenção dedicada por Teófilo Braga ao “príncipe dos poetas” ultrapassou em muito a que seria estritamente necessária no desenvolvimento da sua História da Literatura Portuguesa (1870 - introdução,1875 e 1885) e alcançou um espaço próprio e importante em Camões. Vida e Época (1907), Camões e o Sentimento Nacional (1891) e em Camões: obra lyrica e épica (1911) publicados isoladamente. Esta atenção foi particularmente visível na promoção e realização das comemorações nacionais do tricentésimo aniversário da morte do poeta (1880), de que Teófilo foi um dos principais mentores, sendo esta faceta explorada num futuro post relativo a estas comemorações.

Teófilo Braga (1843-1924) é uma das figuras mais marcantes da vida política e cultural do séc. XIX / princípios do XX em Portugal. Conciliando a acção com a reflexão crítica e teórica perante a realidade histórica vivenciada, a sua biografia demonstra como num indivíduo se podem articular os planos da intervenção cívica e política, o da necessária fundamentação teórica que deve integrar as mais recentes teorias da realidade e, como corolário ou ponto de partida, a acção pedagógica. A sua prolixidade escrita e oral (conferências, discursos e aulas), os comités, comissões e cargos públicos que integrou, a associação a movimentos culturais ideológicos (“Geração de 70”, a colaboração com periódicos de divulgação de novas ideias desde jovem) e, finalmente, a constituição de um ideário filosófico e literário expressivo das correntes “novas” europeias conduzem-nos inevitavelmente à questão de como conseguiu um homem, numa só vida, produzir tanto? Já os seus contemporâneos destacavam esta característica vendo na sua produção / ação uma geração inteira. Os seus biógrafos apontam-lhe uma existência quase monacal, sem distrações, principalmente na juventude e após a morte dos filhos e depois da esposa, encontrando nas leituras e na escrita a forma de se manifestar publicamente.

                          

Relativamente à biografia e bibliografia de Camões, publicação tardia em que já teriam sido avaliados e refletidos os contributos do positivismo e do republicanismo federalista e integradas as experiências dos combates políticos e sociais num sistema próprio, cujo fruto se resumiria numa revisão da História da Literatura pátria, acrescentando novas fontes primárias entretanto trazidas à luz. Há um acordo geral de que os anos de 1872 a 1877 correspondem à sua formação positivista e ao amadurecimento das ideias de Comte num programa teórico e pragmático que se tematizam em obras como em Traços Gerais de Filosofia Positiva (1877) e o Sistema de Sociologia (1884).

A aplicação da metodologia e princípios positivistas à análise biográfica e bibliográfica de Camões, justifica-se porque Como os biographos que vieram depois da geração de Camões, esses investigadores do seculo XVII, como Pedro de Mariz, Severim de Faria, Paiva de Andrade e Faria e Sousa, não souberam penetrar o sentido das tradições camonianas, os críticos que lhe succederam despresaram esse riquissimo material do passado historico, perdendo os fios conductores para uma verdadeira recconstrucção. (in Camões: Epoca e vida, Porto: Liv. Chardron, 1907. - pp. VII-VIII). Considera um imperativo da sua época o exercício positivo da história para resgatar a verdade perdida em tradição mais retórica que factual (…) O verdadeiro estudo só se realisará quando pelo conhecimento geral da Época em que viveu Camões, da psychologia da sua individualidade, e do quadro biográfico contornado nos tópicos irrefragavelmente conhecidos pelos documentos authenticos já achados, se limitarem as interpretações críticas á localisação dos factos em quadro definitivo, e á determinação dos resíduos de verdade histórica, que se encerram n'essas tradições ou lendas pessoaes. (Id., ib. p. VII).

Assim empreende o estudo do Poeta com recurso a todos os testemunhos históricos coligidos e às diversas interpretações, concentrando-se nos elementos autobiográficos das poesias que articula com os elementos históricos característicos da época: O estudo da obra de Camões, para ser bem comprehendida, impõe o conhecimento da sua vida; mas tendo passado uma existência desapercebida para os seus contemporaneos, poucos factos chegaram a nós os vindouros, sendo necessário muitas vezes pelas referencias autobiográficas nas suas obras reconstruir o quadro da sua vida. Qual o processo critico para reconhecer essa physionomia moral do Poeta, sem divagações fantasistas, mas com segurança e verdade nas deducções, que se tornem inferências históricas? pelo processo psychologico, iluminando a biografia sobre o fundo também reconstruido e melhor conhecido do meio social ou da sua época.(…). (In id.,ib., p.344). Assim, o ensaio histórico incorpora “dados psicológicos”, factos do universo interior subjectivo traduzidos pelos acontecimentos históricos que os determinaram ou que promoveram. A biografia de Camões, por Teófilo Braga, apresenta a sua vida em 4 momentos: “Nascimento, seus ascendentes e educação litteraria” ! “”A Côrte de D. João III” | “Desasseis annos no Oriente” e “Regresso de Camões a Lisboa e sua morte” encontrando nestas 4 “épocas” da sua vida aspectos fundamentais para a compreensão do homem e da sua obra. No final, justifica-se por aqui o ímpeto que o moveu ao propor as grandes comemorações nacionais do 3º centenário, em 1880, encontrando em Camões o herói laico que pode assumir um ideário nacional simbólico do valor de Portugal.

MFG@BA

Recordamos Hoje: João de Sousa Carvalho

Compositor e músico, nasce em 1745 no Alentejo, Estremoz. Inicia os seus estudos musicais no Seminário dos Santos dos Reis Magos de Vila Viçosa. Frequenta, mais tarde, na qualidade de bolseiro do rei D. José I, o Conservatório di Sant'Onofrio a Capuana onde, entre outros, estudaram Nicolo Jommelli, Nicolo Piccini ou Giovanni Paisello. De volta a Portugal, ca. 1767, ingressa, obrigatoriamente (vid. Alvará de 1760, abaixo), na Irmandade de Santa Cecília (1603-1834) em Lisboa e mais tarde no Real Seminário de Música da Patriarcal (1713-1834), anexo à Capela Real, onde foi professor e mestre de Capela. Torna-se, após a morte de David Perez (1778), mestre de música da família Real. Morre no Alentejo em 1798.

Composições, manuscritas, no acervo da Biblioteca da Ajuda:

L’amore industrioso, 1769: BA. 48-I-13 a 48-I-15 (Executada no Teatro da Ajuda em 31 /03/1769). 

        BA. 48-I-16 a 48-I-26; 54-III-48 a 50; 54-III-51 e 52; 54-III-53 e 54; 54-III-55 (1,2, 3, 4, 5, 6)

L'Eumene , 1773 : BA. 48-I-38 a 48-I-40 (Executada a 6/06/ 1773, anos do Rei)

L’Angelica , 1778: BA. 48-I-34 e 48-I-35

Perseo , 1779: BA. 48-I-46 e 48-I-47

Testoride argonauta , 1780: BA. 48-I-50 e 48-I-52

Seleuco, re di Siria, 1781: BA. 48-I-48 e 48-I-49

Everardo II, re di Lituania , 1782: BA. 47-V-27 (Executada a 5 /07/ 1782)

Penelope, 1782: BA. 48-I-44 e 48-I-45

Matinas do Coração de Jesus, 1783: BA. 48-IV-16

L’Endimione, 1783: BA. 48-I-36 e 48-I-37 (Executada a 25 /07/1783)

Tomiri , amazzone guerriera, 1783: BA. 48-I-28 e 48-I-29 (Executada a 17 /12/1783)

Adrasto, re degli Argivi, 1784: BA. 48-I-8 e 48-I-9 (Executada a 5 /07/ 1784)

Nettuno ed Egle, 1785: BA. 48-I-41 (Executada a 9 /06/ 1785, na Ajuda)

Alcione, 1787: BA. 48-I-6 e 48-I-7

Numa Pompilio II, re dei romani, 1789: BA. 48-I-42 e 48-I-43 (Executada a 24 /06/ 1788)


Documentação na BA relativa a João de Sousa Carvalho:


1793 Jan. 28, Genova

Conta de Gio. Batta. Cervelleza dirigida a João de Sousa Carvalho, em Lisboa, referente a várias encomendas de óperas (“Zenobia di Palmira”, de Giovanni Paisiello; “La disfatta di Dario”, de Giuseppe Danielo; “La secchia rapita” e “Il pastor fido” de Antonio Salieri; “La vendeta di Nino” de Francesco Bianchi; “Il Bizzardo nell’Indie” de Marcello de Capua; óperas de Gaetano Marinelli; “Il Mostro” de Seidelma; “La Briseide” de Ferdinando Robuschi; “Antigona” de Peter von Winter; “Alessandro nell’Indie” de Niccolò Piccini;
“Il Medonte” de Giuseppe Sarti’)

BA - 54-VIII-39, nº 5c-5d (fl. 1)













BA - 54-VIII-39, nº 5c-5d (fl. 1v-2)














BA - 54-VIII-39, nº 5c-5d (fl. 2v)




Róis de Confessados da Paróquia da Ajuda: 1692-1908

Quaresma do Ano de 1784

João de Sousa Carvalho, músico, 
consta  no "Paço Velho", na Calçada da Ajuda.







BA - 51-III-38, fl. 69v-70)




1781 Jul. 27, San Ildefonso
Carta da Infanta D. Maria Josefa [de Bourbon] , irmã de Carlos IV, para a rainha D. Maria I onde, entre outros assuntos, manifesta o gosto pela música de João de Sousa, português, autor da serenata que se cantou no aniversário do rei [D. Pedro III].
BA - 54-V-20, n.º 5c











Mais:

Compromisso da Irmandade da Gloriosa Virgem e Martir Santa Cecilia ordenado pellos Professores da Arte da Musica em o anno de 1749
(BNP) [aqui]

Alvará régio, de 15 de Nov. de 1760, a proibir o exercício da arte da Música em Lisboa aos que não fossem da Irmandade de Santa Cecília (ANTT) [aqui]

Dicionários, vocabulários e outras artes...

Hoje, 11 de Fevereiro, o Japão comemora o Dia Nacional da [sua] Fundação. A mais de 10.000km de distância, a Biblioteca da Ajuda evoca neste dia as relações iniciais entre dois povos através de obras do seu acervo reservado que ilustram exemplarmente a dificuldade e esforço investidos nesse encontro de há quase 500 anos.

Comemorou-se, em 2023, o encontro histórico dos portugueses com os japoneses há 480 anos. De entre “a gente ousada” que concretizou esta chegada do Ocidente ao Extremo Oriente, excetuando os óbvios marinheiros e comerciantes, foram os padres da Companhia de Jesus que mais contribuíram para o conhecimento mútuo inicial das duas civilizações. Assim, as primeiras ‘relações’ de visu da geografia e costumes japoneses chegam à Europa através da publicação das cartas dos missionários, iniciando um novo tipo de leitura que, desde o início, teve uma adesão extraordinária dos leitores europeus. A preponderância portuguesa nesta aventura inicial da missionação, não pelo número de missionários de nacionalidade portuguesa, mas pelo papel central que desenvolvemos na navegação, acesso e fixação no Extremo Oriente graças em boa parte à nossa centralidade no universo católico da época, conferida pelo Padroado Português do Oriente e cuja concretização se manifesta na formação coimbrã (Colégio das Artes) dos missionários e no seu acesso (obrigatório) através de Macau.

O conhecimento do outro, em geral, exige a compreensão do seu contexto cultural específico o qual é grandemente facilitado e aprofundado pelo conhecimento da língua, uma das expressões materiais maiores da cultura de um povo. A evangelização, que presidia como objetivo expresso à missionação, implicava a transmissão verbal de conceitos alheios ao contexto cultural, religiosidade e racionalidade japoneses, bem como, simultaneamente, exigia uma reflexão sobre os mesmos e a forma de os traduzir – a limite sempre para latim, língua de formação obrigatória dos noviços, mas que era ainda para muitos missionários, especialmente os padres formados localmente, uma língua estrangeira. É aqui, na necessidade de se divulgar uma religião transmitida por palavras e a partir de um livro, que se compreende a propagação de materiais escritos – manuscritos ou impressos – relativos ao cristianismo e aos seus dogmas principais que, sob a forma de catecismos ou “artes da língua” - proliferaram desde o primeiro momento. Mas estas obras de divulgação e devoção exigiram a sua tradução para as línguas naturais, destacando-se neste processo inicialmente os da Índia ao Japão. A sobrevivência de alguns destes exemplares de obras complementares e fundacionais (dicionários, artes e catecismos) em relação aos textos canónicos e devocionais demonstram ainda hoje o trabalho e esforço de compreensão intercultural que a chegada ao Extremo Oriente impôs.

Destacaremos aqui no blogue 4 desses exemplares, da coleção à guarda da BA, com características diversas, mas produzidos entre 1590 e 1632, que são expressão da produção linguística histórica no Japão ou para o Japão. Destes, começamos hoje com 2 manuscritos com proveniência e características distintivas idênticas.

BA 46-VIII-35 – Vocabulario da lingoa de Iapaõ com a declaração em Portugues, feito por alguns Padres, e Irmaõs da Companhia de IESV. / Com licença do Ordinario, e Superiores em Nangasaqui no Collegio de Japaõ da Companhia de Jesvs. Anno de 1593. 

 Está tresladado do L.º emprensso q/ esta na Secretaria da Provincia de Japaõ no Coll.º de Macao, hoje 22 de Agosto de 1747. Joaõ Álvares

 BA 46-VIII-35, lombada. 

Como advertido no rosto, trata-se aqui de um Vocabulário da língua japonesa com a explicação dos vocábulos em português através da remissão para os seus correspondentes traduzidos vocabularmente ou parafraseados em explicitações textuais. Esta necessidade de evocar um conjunto de sinónimos e, por vezes, uma construção metalinguística foi o modo encontrado de ultrapassar as variações linguística do japonês que se constituem em estilos formais diversos, nas utilizações específicas de uma comunidade ou espaço geográfico e “por ser a lingoa de Japaõ muito abundante, e uaria no uso; sendo hum o estillo de cartas, outro o dos livros, outro o da pratica familiar, e outro o das pregaçoens. ...”. A extensão e variedade vocabular do japonês é associada a outros tantos obstáculos deste universo linguístico tão afastado das línguas europeias, para justificar no “Prólogo” quer o tempo necessário para o executar, quera adição de um Suplemento. Segundo o A. do prólogo, esta obra corresponde ao aperfeiçoamento de várias ‘artes’ e vocabulários manuscritos pré-existentes na Província do Japão, pelos quais os PP. e Irmãos recém-chegados aprendiam o japonês que, cerca de 50 anos após a chegada dos portugueses, ainda era considerada uma língua difícil de aprender, mesmo na oralidade. Sem incluir os caracteres da escrita japonesa – mas sim os vocábulos apresentados pela sua transliteração em alfabeto latino – e com isso evidenciando a necessidade prioritária, evangélica e funcional, da oralidade vai buscar ao Dicionário de Latim já impresso (códice abaixo) a sua estrutura organizativa, aumentando em muito o seu conteúdo.

                                                          

              

O manuscrito apresenta um aparente erro ao tresladar a data da sua manufatura em 1593, quando a investigação lexicográfica neste âmbito indica a data de 1603 – 1604 para a sua impressão em Nagasáqui. No entanto, as datas das folhas iniciais, onde se transcrevem a Aprovação e Licença dos superiores da Companhia no Japão, têm estas últimas datas registadas e também referidas. Com estes dados, será difícil pôr em causa o trabalho do copista que, no caso, é João Álvares, autor, revisor e coordenador das cópias que constituem o núcleo de documentos provenientes de Macau nos anos de 1744-1745 e enviados para a Procuratura da Província do Japão em Lisboa, estando por isto muito habituado a originais com lacunas. Este é a cópia ms. do Vocabulário impresso em 1603-1604 em Nagasáqui que corresponde ao aperfeiçoamento de outro(s) existente(s) eventualmente impresso em 1593 ou para tal preparado. Os textos introdutórios alertam claramente para esta situação, embora de forma pouco clara quanto à sua forma: “...dou Licença que se imprima o Vocabulário Japónico, feito agora de novo p.los nossos Padres.” (in “Licença”, com data de 2 janeiro 1603); ou ainda “... este Vocabulário Japonico feito agora de novo, e posto em orde[m] por algu[n]s Padres e Irmaons da nossa Companhia.” (in “Aprovação”, de 4 de Agosto de 1603)

 

O Prólogo, com as suas “advertências para o uso e inteligência deste Vocabulário” resume de forma muito expressiva o trabalho esforçado e coletivo da Companhia de Jesus nos anos iniciais no Japão cuja priorização do domínio da língua japonesa pelos PP. e Irmãos e do latim pelos neófitos, catequistas e cristãos em geral se materializou num conjunto de materiais linguísticos que a vinda do parque tipográfico, com o regresso da Europa dos 4 Legados japoneses dos Daimios que vieram a Roma (Portugal e Espanha), muito ajudou a divulgar e aperfeiçoar.



BA 46-XIII-11 e 12 – Dictionarium Latino Lusitanicum, ac Iapponicum ex Ambrosii Calepini volumine depromptum: in quo omisis nominibus propriis tam Locorum, quam hominum, et qubusdam aliis minus usitatis. Omnes Vocabulorum significationes, elegantioris que dicendi modi apponuntur : in usum, et gratiam Japponicae Juventis, quae Latino idiomate perperam navat, Europeorum, qui Japponicum Sermonem addiscunt. - Namacusa in Collegio Japponico Soicietatis IESV cum facultate Superiorum. Anno de MDXCV [1595]

No anno de 1738 mandou o P.e Domingos de Britto da Companhia de Jesv Provincial da Provincia de Jappaõ tresladar o Dictionarium p.ª se mandar por na Procuratura da provincia de Jappaõ em Lisboa, [fim desta linha e seguinte riscadas, seguindo a anotação na fl. seguinte] ... O P. P[rocurad]or da provincia de Jappaõ em Lisboa não poderá emprestar este L.º senaõ guardallo na mesma Procuratura. O qual se manda em a Nao S. Pedro, e S. Joaõ em Janeiro de 1745. Macao 2 de Janeiro D 1745. [Assinatura do copista - João Álvares? - riscada].

  O longo título deste dicionário remete para o seu émulo, conteúdo e propósito. Reconhecendo o exemplo a seguir no dicionário de Ambrogio Calepino, cuja primeira edição em latim, de 1509, é considerada o início desta tipologia de obras - léxicos e dicionários - e do seu sucesso editorial, os linguistas jesuítas conferem-lhe assim uma autoridade que o projeto de aproximação (e apropriação) ao Japão através da língua não poderia ainda alcançar por si. Excelentes retóricos, os jesuítas apelam à importância do ethos – da credibilidade assegurada por fontes respeitadas – quando é necessário persuadir da qualidade de um empreendimento. 


Também o seu conteúdo, indicado no título, remete para um processo de aprendizagem contínua e aperfeiçoamento do domínio do japonês e do latim pelas duas comunidades em interação. Por um lado, sintetiza o conhecimento vocabular japonês excluindo os elementos que o complexificam, nomeadamente os nomes próprios geográficos e onomásticos que levantam maiores problemas de transliteração e tradução; por outro, dá-se aqui uma atenção particular à forma linguística superior, educada “Omnes Vocabulorum significationes, elegantioris que dicendi modi apponuntur...”, e que adverte o leitor para a “elevação” relativamente ao exemplar de 1593, onde se plasmavam as variações dos significados populares e eruditos dos vocábulos. Por último, dizem-nos os PP. que este “edifício” literário é de primeira utilidade para 2 géneros de interlocutores, sintetizando numa frase a história do encontro civilizacional no Japão, há época com 50 anos: destina-se à juventude japonesa para melhorar o seu domínio do latim – abrangendo as conversões dos nobres japoneses, potenciais futuros catequistas e padres locais de qualidade - e o esforço diário de aprendizagem do japonês pelos padres jesuítas da Província do Japão.

                               



O exemplar da Biblioteca da Ajuda é uma cópia finalizada em 1745, pelo Ir. João Álvares, do exemplar impresso existente na Procuratura do Japão, no colégio da Madre de Deus em Macau, pertencente ao conjunto de cópias - muitas únicas - promovido pela Academia Real de História e que se materializa hoje na coleção Jesuítas na Ásia e seus complementos documentais. A nota ms. marginal na 1ª folha dá conta do estado em que se encontravam muitos dos documentos guardados em Macau, cujas condições de humidade teriam deteriorado grandemente os originais, sendo por isso estas cópias exemplares da importância do resgate preventivo no trabalho dos arquivos e na preservação de fontes primárias em estado de consulta/leitura. Tendo sobrevivido muito poucos exemplares desta impressão de 1603-1604 [quatro apenas na Europa e Brasil] esta cópia apresenta-se como fonte primária de direito próprio, cujo estudo tem trazido conhecimento sobre a evolução da língua japonesa e do contexto histórico material dos séculos XVI e XVII em que foi produzida. A convicção da sua fiabilidade poderá ser acrescentada com o diálogo crítico da cópia com o seu original, fortalecendo o valor deste códice como fonte primária.

No próximo e final “capítulo” desta apresentação de exemplares da BA relativos ao Japão daremos notícia de dois impressos que complementam a “fotografia escrita” de um encontro entre 2 civilizações estranhas que, em poucas décadas, se compreenderam mutuamente numa epopeia de sucessos e obstáculos que é exemplar de um processo histórico de aculturação, alicerce basilar da globalização que hoje caracteriza o nosso mundo cultural.