A colecção de música da Biblioteca da Ajuda (II)

As evidências que ´contam´ a história da 'livraria de música de SS. MM. e AA.' – inventários, róis de livros, dedicatórias, contas de despesas, notícias de periódicos, marginália em mss., etc., e que são elencadas no estudo de Mariana Machado dos Santos incluído no vol. IX do "Catálogo de Música Manuscrita da Biblioteca da Ajuda" - remetem principalmente para a actuação dos soberanos no período pós-terramoto.

A dedicação à música como objecto de fruição cortês, a par da ideia da mesma como objecto de estudo, logo, de maestria da arte musical como parte integrante da educação dos príncipes, foi um dos motores da evolução do gosto e das actividades de lazer da família real portuguesa e, por extensão, das camadas cultas da sociedade, principalmente nos sécs. XVIII e XIX.


              


É com D. José e D. Maria I que os gastos com músicos, composições e produções operáticas ou cenográficas de grande porte e ao gosto italiano se introduzem nos hábitos 'esclarecidos' de um reinado absolutista. É inaugurado o "Teatro de Salvaterra", em 1762, onde se representaram muitas das óperas (principalmente cómicas) e outras peças comemorativas de ocasiões especiais para a Família Real. Juntamente com Queluz tem uma utilização periódica pela corte, especialmente na Primavera e Verão.


É ainda no paço velho da Ajuda que D. Maria I inaugura a Sala dos Serenins Reais, chamada ainda no séc. XVIII a Sala da Serenata, onde muitas músicas de câmara ou de execução nocturna ("serenata") foram apresentadas. Embora a sua finalidade tivesse sido alterada logo em 1760 (Sala do Conselho de Estado), encontram-se documentos que comprovam a intervenção arquitetónica e artística (1783) que lhe deu o aspecto que até hoje conserva, apesar do uso que depois de D. João VI lhe foi dado como parte/extensão da Real Livraria. É, pois, italiana a marca que já desde o reinado de D. João V se imprime à direcção artística em Portugal.
Dentro dos edificados reais, as funções religiosas ordinárias e extraordinárias estão acauteladas em estruturas que contemplam a dimensão musical que diferencia as cerimónias. A basílica do Real Edifício de Mafra, desde a sua fundação e inauguração com D. João V, habitação temporária de D. João VI ou sazonal de D. Maria II, é exemplar desta dimensão religiosa que domina parte do espólio musical da BA.


A ida da corte para o Brasil, sendo um movimento geral administrativo e estratégico, estende ao Rio de Janeiro estes hábitos de fruição musical e muito concorre para o desenvolvimento desta arte no Brasil.


O interregno no Palácio das Necessidades – D. Maria II e D. Pedro V - é acompanhado pelo desenvolvimento da cidade e das estruturas teatrais a funcionarem na mesma – S. Carlos, Teatro da Rua dos Condes e do Salitre – a par de serões ou tardes musicais privadas e de assistência a grandes eventos religiosos musicados. 

O tempo político conturbado das "guerras liberais", com a depauperação do país e uma "atitude nova" da família real, põe a ênfase nos nomes recrutados para o ensino dos príncipes, mostrando, por ex., Manuel Inocêncio Liberato dos Santos como mestre dos Infantes reais e acompanhando ou instrumentando peças para/com D. Fernando II, exímio cantor ao que parece, e instrumentando peças para D. Luís.

É com a re-instalação no paço da Ajuda, agora renovado, e a integração neste da Livraria oratoriana mantida parcialmente no Palácio das Necessidades, que nos chegam os núcleos musicais de Queluz e do paço da Bemposta, para aqui remetidos pelo Almoxarife do Paço de Queluz (1845) que tenta evitar a degradação das peças de Marcos Portugal compostas no Brasil e que para ali tinham sido levadas; e pelo organista da Real Capela das Necessidades (Policarpo Procópio Nunes) que pede a integração nas Necessidades do cartório de música da Bemposta (1840) por ser de grande qualidade.

É, no entanto, com D. Luís I e D. Maria Pia que a música volta a ser um elemento catalisador da vida pública e privada no paço, sendo a este rei que uma grande parte da colecção de música se refere, quer em autoria, autógrafos ou cópias dedicadas e muitas vezes inéditos.

As festas no Paço da Ajuda, a ópera no S. Carlos, os recitais e as aulas de música nos Serenins, as peças para as capelas reais, Patriarcal da Ajuda incluída até 1843, e uma profusão de testemunhos físicos comprovam esta tendência musical da última dinastia da família real.

Guardando, em conjunto, as peças musicais e os documentos que as iluminam, a Biblioteca da Ajuda mostra nesta sua colecção de música uma unidade que é uma das características que a tornam incontornável na compreensão histórica da evolução sócio-artística de Portugal.






Instrumentos de acesso à colecção:

Flores de Música da Biblioteca da Ajuda : exposição de raridades musicais manuscritas e impressas dos séculos XI a XX./ Lisboa: Ministério da Educação Nacional – Biblioteca da Ajuda, 1973.
Catálogo de libretos da Biblioteca da Ajuda / Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1988
Catálogos locais: "Música e Músicos" ; "Paço da Ribeira …Palácio da Ajuda: iconografia, notícias e descrições"; "Inventário da documentação avulsa da Biblioteca da Ajuda" / Conceição Geada – Biblioteca da Ajuda

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