No dia 25 de Abril de 1775, nascia, no Palácio Real de Aranjuez, D. Carlota Joaquina de Bourbon, Infanta de Espanha, que em 1785, no âmbito de uma política de reforço de laços diplomáticos e familiares entre as monarquias ibéricas, contrairia casamento com o Infante de Portugal, D. João de Bragança (17-1826). Com apenas dez anos de idade deixaria a sua terra natal, passando, a partir de então, a fazer parte integrante da família real portuguesa. A morte do filho primogénito de D. Maria I (1734-1816), o Príncipe D. José (1761-1788), em 1788, traria o casal para o primeiro plano da vida política portuguesa, agora como Príncipes do Brasil, Príncipes Regentes, a partir de 1792, e, mais tarde, Reis de Portugal, Brasil e dos Algarves, após a morte da soberana, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1816.Poucos monarcas tiveram reinado tão atribulado, como o que calhou a D. João, agitado pelas ondas de choque da Revolução Francesa de 1789, e pelas sequentes invasões napoleónicas, que determinaram a transferência da corte para o Brasil, a propagação das doutrinas liberais, e, com elas, no regresso ao continente europeu, a imposição da assinatura das Bases da Constituição e da própria Constituição em 1822, documentos que ruíam os fundamento do edifício político e social do Antigo Regime, originando revoltas, golpes, polarizando partidos, promovendo cisões que atingiriam a própria família real.
“written constitutions were a new idea”[1]. A ameaça à autoridade do rei assumia agora a forma de Constituições, documentos que significavam uma limitação escrita ao poder régio e, doravante, a supressão do elemento de legitimação divina da soberania que a partir de então transitava para a Nação, representada em órgãos nos quais assistiam os cidadãos, igualados em direitos. As leis deixariam de ser apenas ditadas pela tradição. A monarquia de absoluta passaria a constitucional. A assinatura das Bases da Constituição, em 1821, assim como da própria Constituição, em 1822, que integravam todas estas novas concepções de governo, eram “actos simbólicos” que significavam a “aceitação do novo regime. Assim entendiam os liberais e também os que se lhes opunham”[2].
D. João, acatou os ventos de mudança, orientando os seus passos de modo pragmático, com o objectivo de acalmar partidos e dissensões, ora jogando a favor dos liberais moderados, ora simulando apoiar as sublevações absolutistas, que sucederam. D. Carlota, contrariamente à atitude contemporizadora de seu marido, como fiel Bourbon, demonstrou que nada tinha esquecido, e que não abdicaria de nenhuma das prerrogativas, que por nascimento e de direito, considerava, lhe eram inerentes. Persistindo na defesa de uma monarquia intocada nos seus poderes, de legitimidade divina e não parlamentar, recusou, com veemência, jurar os documentos constitucionais.
O papel de D. Carlota na corte portuguesa e, essencialmente, os episódios que rodearam os acontecimentos da vida política nacional, a partir do início da década de 20 de oitocentos, concitaram visões contrastantes sobre a sua personalidade, muitos dos juízos críticos apresentando visões anedóticas que contaminariam a sua fortuna crítica, enquanto a visão dos seus contemporâneos foi sendo apagada pelo tempo.
No entanto, a soberana representava muitos dos paradoxos do tempo em que viveu, pois lograva conjugar uma disposição política conservadora, já que empenhada na defesa das estruturas sociais, políticas e religiosas de Antigo Regime, com uma abertura a novas ideias estéticas, artísticas e literárias, materializadas no seu legado cuja importância para o património nacional é, hoje, incontestável.
A Livraria de D. Carlota é a materialização dessa abertura de espírito, testemunho de uma curiosidade intelectual que a fazia dispor de obras dos mais diversos quadrantes ideológicos, algumas marcadas pelo Index censório. Uma apreciação rápida sobre aquele códice, “Catálogo da Livraria que foi de S. Mag.de a Senhora D. Carlota Joaquina de Bourbon” [51-XIII-7], pertencente ao acervo da Biblioteca da Ajuda, permite-nos descortinar autores ideologicamente tão diversos como os que teriam, voluntaria ou involuntariamente, influenciado o curso da Revolução em França, os “filósofos”, como J. J. Rousseau (1712-1778), com Contrato Social ó principios del derecho político[3], Condorcet (1743-1794), Esquisse de un tableau historique des progrés de l´esprit humain[4], Condillac (1714-1780), ou o Abade Mably (1709-1775), com diversos títulos; bem como os de sinal contrário, os contra-revolucionário ou “anti-filósofos”, como o Abade Nicolas Bergier (1718-1790), um dos mestres franceses da contra-revolução[5], autor que, segundo Masseau, “on peut compter parmi les plus talentueux adversaires des philosophes”[6], cuja obra faz a apologética da religião cristã, defendendo-a dos ataques que, considerava, lhe eram movidos por alguns dos filósofos, ou o Abade Barruel (1741-1820), autor que se dedicou à defesa da religião cristã e à contestação, pós Revolução Francesa, do papel das sociedades secretas, para o desmoronamento dos princípios que sustentavam a sociedade de Antigo Regime, ou o seu tradutor português, José Agostinho de Macedo, cuja “pena agressiva”[7] dedicou, na sua “polifacetada atividade literária”, (em poesia, teatro, epistolografia, filosofia, história, crítica, política, parenética, oratória fúnebre e periodística)[8], a condenar o sistema liberal e à defesa da Rainha, na sequência do processo que lhe fora movido, por parte dos parlamentares liberais, pela recusa em prestar juramento à Constituição, em Novembro de 1822.
Para além do pensamento político, encontramos uma diversidade de temáticas, sendo de realçar vultos da literatura, tais como F. R. Chateaubriand (1768-1848), com Genie du Christianisme ou Beautés de la Religion Chrétienne[9] e Os Martyres ou Triumpho da Religião Christaa[10], nas quais faz a apologética do Cristianismo em termos inovadores, entre outros autores, que testemunham uma vontade de conhecimento, sem limites. Em síntese, aquele inventário reflecte uma gama de interesses múltiplos e actualizados, já que uma boa parte das obras são de edições contemporâneas da soberana.
Capa com rótulo com o título sobre pele, com ferro a ouro, sobre papel marmoreado; folha de rosto do Catálogo da Livraria que foi de S. Mag.de a Senhora D. Carlota Joaquina de Bourbon, ano de 1831, Biblioteca da Ajuda, ms. 51-XIII-7
O “Catálogo da Livraria que foi de S. Mag.de a Senhora D. Carlota Joaquina de Bourbon”, cuja data, 1831, é a mesma de outros inventários de livrarias que se encontram na Biblioteca da Ajuda, relativas a diversas individualidades, de entre as quais, D. Maria Francisca Benedita (1746-1829), e ainda de diversas personalidades objecto de sequestro patrimonial, na sequência do seu banimento político, depois de 1828[11], relacionam-se com a incorporação de diversos espólios no âmbito das medidas tomadas no reinado de D. Miguel (1828-1834), com o objectivo de reverter o empobrecimento da Real Biblioteca Particular, muito desfalcada pelo facto de a quase totalidade do seu acervo ter permanecido no Brasil.
A ligação de D. Carlota aos livros e à leitura fica agora marcada, de um modo perene, no conjunto de obras que agora são parte do acervo da Biblioteca da Ajuda.
Talvez não por acaso no Retrato de D. Carlota Joaquina, sem autoria determinada, pertencente às colecções do Palácio Nacional da Ajuda, (inv. 41367 PNA) a soberana se faça representar rodeada de atributos culturais, como Princesa ilustrada, nele se destacando um livro onde pousa a pena, com a inscrição “VIRT E SAB”, na lombada, virtude e sabedoria que o livro materializa, bem como a ligação da soberana ao universo literário.
Detalhe da pintura Retrato de D. Carlota Joaquina
óleo sobre tela, inv. 41367 PNA. Fotografia João Krull.
Documentação de D. Carlota Joaquina na biblioteca da Ajuda[aqui]
Mafalda M.B.@BA
NOTAS:
[2] LOUSADA, Maria Alexandre; FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo, D. Miguel, Reis de Portugal, CL, 2006, p. 31.
[3] ROUSSEAU, J. J. Contrato Social ó principios del derecho político. Buenos Ayres, 1810, 4º. BA 96-II-45.
[4] CONDORCET, Esquisse de un tableau historique des progrés de l´esprit humain, Paris, 1798, 8º. BA 65-III-53.
[5] PEREIRA, Sara M., 2008, nota p. 165.
[6] MASSEAU, Didier, « Notes de Lecture », no estudo crítico à obra Réponses chrétiennes à la critique des Lumières, ALBERTAN-COPPOLA, Dix-Huitième siècle, 2014/1 (nº 46), pp. 737-738. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-dix-huitieme-siecle-2014-1-page-107.htm. Consulta em 04.09.23.
[7] TORGAL, Luís Reis, “A contra-revolução e a sua imprensa no vintismo: notas de uma investigação”, Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-1º-2º, pp. 279-292. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223994964L3gJY0wx8Uk73LA5.pdf., p. 282.
[8] FERREIRA, João Pedro Rosa, “Humor, insulto e política nos periódicos de José Agostinho de Macedo”, Atlante, Révue d´études romanes, 13/2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/atlante/995?lang=pt. Consulta em 15.05.23.
[9] CHATEAUBRIAND, François Auguste, Genie du Christianisme ou Beautés de la Religion Chrétienne, Lyon, 1809, BA 4-V-12 a 16.
[10] Idem, Os Martyres ou Triumpho da Religião Christaa. Trad em Portuguez por Francisco Manoel do Nascimento, Paris, 1816, 8º. BA 69-II-62 e 63.
[11] Ver estudo da signatária Banidos os proprietários das Livrarias mas não os livros, Linha Editorial Estudos, Palácio Nacional da Ajuda. Disponível em: https://www.palacioajuda.gov.pt/paginas/69c4ddee-banidos-os-proprietarios-das-livrarias-mas-nao-os-livros
[4] CONDORCET, Esquisse de un tableau historique des progrés de l´esprit humain, Paris, 1798, 8º. BA 65-III-53.
[5] PEREIRA, Sara M., 2008, nota p. 165.
[6] MASSEAU, Didier, « Notes de Lecture », no estudo crítico à obra Réponses chrétiennes à la critique des Lumières, ALBERTAN-COPPOLA, Dix-Huitième siècle, 2014/1 (nº 46), pp. 737-738. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-dix-huitieme-siecle-2014-1-page-107.htm. Consulta em 04.09.23.
[7] TORGAL, Luís Reis, “A contra-revolução e a sua imprensa no vintismo: notas de uma investigação”, Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-1º-2º, pp. 279-292. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223994964L3gJY0wx8Uk73LA5.pdf., p. 282.
[8] FERREIRA, João Pedro Rosa, “Humor, insulto e política nos periódicos de José Agostinho de Macedo”, Atlante, Révue d´études romanes, 13/2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/atlante/995?lang=pt. Consulta em 15.05.23.
[9] CHATEAUBRIAND, François Auguste, Genie du Christianisme ou Beautés de la Religion Chrétienne, Lyon, 1809, BA 4-V-12 a 16.
[10] Idem, Os Martyres ou Triumpho da Religião Christaa. Trad em Portuguez por Francisco Manoel do Nascimento, Paris, 1816, 8º. BA 69-II-62 e 63.
[11] Ver estudo da signatária Banidos os proprietários das Livrarias mas não os livros, Linha Editorial Estudos, Palácio Nacional da Ajuda. Disponível em: https://www.palacioajuda.gov.pt/paginas/69c4ddee-banidos-os-proprietarios-das-livrarias-mas-nao-os-livros
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