A Biblioteca da Ajuda assinala este dia com uma obra que é simultaneamente exemplar da sua colecção,
paradigma da poesia épica / romance de cavalaria e do processo tipográfico
associado a edições antigas: Orlando
Furioso de Ludovico Ariosto, Lião, 1561.
Estamos perante um precursor dos grandes épicos renascentistas com o conteúdo associado aos romances de cavalaria medievais, às gestas de heróis trágico-cómicos que cantam os feitos militares de cavaleiros cujo percurso é marcado por amores cujo destino não está nas suas mãos. Publicado pela primeira vez em 1516, em Ferrara, teve uma 2ª edição muito próxima, em 1521, onde se apresentava em 40 cantos, em oitava métrica, e com uma marcação expressa de coloquialidade através de diálogos e de expressões de subjetividade visíveis nos argumentos que introduzem os cantos. A 3ª edição, 1532, acrescenta 6 novos cantos e constitui um aperfeiçoamento estilístico do longo poema, além do acrescento de novas cenas narrativas e personagens. É considerada a edição completa, com os 46 cantos que desde aí se publicam, i. é, cerca de 5.000 novos versos. Doze anos depois, mais 5 cantos são acrescentados num apêndice – Cinque canti – que prenuncia uma sequência da história principal, recuperando e engradecendo personagens de antecedentes literários, como M. M. Boiardo, que na origem eram apenas referidos. Esta associação de um estilo formal clássico e aparentemente rígido é posto ao serviço de narrativas que diversificam o caracter épico dos seus antecessores clássicos, introduzindo personagens e situações de comédia e cada vez mais associado a um texto cenográfico.
As múltiplas edições do
Orlando Furioso expressam o fenómeno que as originou: as edições esgotaram… indo de encontro a uma estética do gosto renovada neste renascimento dos clássicos e das crónicas medievais em releitura criativa. Ariosto – cujo pendor artístico para a escrita foi muito tempo adiado por obstáculos da vida – dedica-se durante uns anos a criar uma resposta / complemento literário à obra inacabada
Orlando Innamorato de Matteo Maria Boiardo (1441-1494), cuja publicação póstuma, em 1495, teve múltiplas edições no séc. XVI. Das mais de duas centenas de edições no séc. XVI da obra de Ariosto identificadas na bibliografia italiana (Edit 16), uma larga parte é impressa em Veneza (à época “a sereníssima república de Veneza que começava o seu declínio com o fim do monopólio comercial no mediterrâneo) onde se multiplicaram as edições e os seus impressores.
O exemplar da BA que aqui trazemos do Orlando Furioso é imediatamente destacado de todos os outros pelas suas dimensões: literalmente uma edição de bolso, provavelmente aparada mas que não terá alterado grandemente a sua pequenez: 11 cm X 7 cm.
No entanto, a encadernação, quase minúscula, protege 1419 páginas correspondentes a 2 partes (40 + 6 cantos + 5 canti) sequenciadas numericamente e a um extenso vocabulário geográfico e onomástico não paginado.
Mantém uma estrutura fixa, com ‘declaração’/argumento a anteceder cada canto e uma gravura alusiva à narrativa poética que ali começa:
O ex. escolhido apresenta-se mutilado, o que levou à cópia manuscrita das pp. em falta. Esta particularidade é
clarificada pela sua proveniência histórica: livro de ensino num colégio
jesuíta com uma livraria pública, S. Roque, poderá ter servido o Colégio dos
Nobres e sido incorporado na Biblioteca por esta via. Particular é também o facto de ser uma doação de Lopo Soares, um ainda anónimo
bibliófilo do séc. XVI (provavelmente) que é recordado num número relativamente
alargado dos livros de S. Roque que chegaram à Biblioteca Real.
A
encadernação, em pergaminho simples, que terá sido reencadernada para a inclusão
de folhas em branco iniciais com a cópia manuscrita, remete também para este
ambiente de biblioteca escolar pública e indiretamente para a atualidade do
ensino jesuíta que emparelha o conhecimento das fontes clássicas linguísticas e
das obras ‘modernas’ que se tornaram clássicas com conteúdo narrativo atraente
para os jovens.
Por último,
evidenciamos o trabalho tipográfico e iconográfico (xilogravuras) deste
exemplar, fruto do trabalho de um impressor humanista, Guillaume Rouillé
(1518-1589) cuja aprendizagem decorreu, sem espanto, em Veneza junto de
Gabriele Giolito de' Ferrari (c. 1508 – 1578).
A divulgação exponencial desta obra no mercado livreiro
europeu, e principalmente espanhol e francês, é um dos factores que explicam a
sua vasta influência em autores e obras do património clássico mundial, como
Cervantes – que criticou a 1ª tradução espanhola logo em 1550 -, Torquato
Tasso, Shakespeare, Voltaire e mesmo Camões. A sua permanência destacada na
história da literatura europeia, as múltiplas traduções, a influência sobre o
teatro, principalmente francês, atestam a sua caracterização como obra prima da
literatura mundial, exemplar também da especificidade dos impressos antigos.
FG@BA
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