A Biblioteca da Ajuda (BA), repositório de um acervo patrimonial muito rico e diverso, possui um número significativo de obras que permite evocar mulheres/damas que se destacaram no seu tempo, apesar de menos reconhecidas na actualidade.
Os estudos de género têm vindo a despertar a atenção do meio
académico já que o quase
apagamento da acção das mulheres nas narrativas históricas, não é
consentâneo com o papel que algumas desempenharam nos contextos sociais,
políticos e culturais em que viveram, nos finais do Antigo Regime e mesmo ao
longo de todo o século XIX.
Nesta ocasião, escolhemos evocar três figuras distintas, activas
nos finais de setecentos, no momento de ruptura histórica marcado pela Revolução
Francesa de 1789 e pela queda da monarquia francesa, pelas invasões
napoleónicas e pela difusão dos ideais republicanos, sendo que neste primeiro
texto apenas falaremos de duas delas e da sua presença na BA. Contemporâneas, e
com destinos igualmente atribulados, uma, Leonor da Fonseca Pimentel
(1752-1799) e outra, Mary Wollstonecraft (1759-1797), foram pioneiras na
afirmação da independência feminina, tendo-se salientado, enquanto intelectuais,
por abrirem vias até aí vedadas ao seu género, quer por pugnarem pela defesa de
um acesso mais amplo das mulheres a algum tipo de educação formal[1],
quer pelos seus modos de vida, marcados pela participação cívica, e pelos ideais
de liberdade e de autonomia face à tutela masculina.
E por fim, nesta invocação não poderíamos deixar de mencionar
D. Leonor de Almeida (1750-1839), Condessa de Oyenhausen, futura Marquesa de
Alorna, aristocrata que ao longo de uma existência plena de incidentes revelou
determinação, capacidade de reagir positivamente às adversidades, espírito
culto e independente, cuja curiosidade intelectual, criatividade literária e “protecção litteraria[2]”
com que favoreceu autores como Alexandre Herculano, marcaria a sociedade
portuguesa, e a história da cultura do seu tempo. A ela dedicaremos o próximo
texto.
Leonor da Fonseca Pimentel. De Leonor da Fonseca Pimentel possui a Biblioteca da Ajuda um interessante manuscrito “La Fuga in Egitto Oratório Sagro dedicato a S.A.R. D. Carlotta Borbone, Principessa del Brasile”[4], datado de 1792. Apesar de dedicada a D. Carlota Joaquina (1775-1830), esta peça, a ser musicada, não consta do Catálogo da Livraria[5] da soberana, elaborado no ano seguinte ao da sua morte, em 1831.
Portuguesa, nascida em Roma, escritora, jornalista, erudita,
Leonor da Fonseca Pimentel foi bibliotecária de Maria Carolina de Habsburgo (1752-1814),
Rainha das Duas Sicílias, sendo “uma das mulheres mais celebradas do seu tempo”.
O seu destino, porém, revelar-se-ia trágico.
Aderindo ao partido republicano, após a chegada das tropas
francesas a Nápoles, dirige, naquela cidade, o jornal O Monitor. Alcançando cargos de prestígio e ofícios raros para uma
mulher, Leonor, contudo, não escapa ilesa à queda da efémera República
napolitana, à qual aderira com entusiasmo. Caindo em desgraça, foi presa,
condenada e executada, naquele mesmo ano de 1799.
No campo da escrita, “depois do soneto, o género literário a
que a jovem Leonor da Fonseca Pimentel mais recorre[ra]”, fora a “poesia para
música”[6],
redigindo “quatro cantatas e uma oratória”, sendo esta última, a que dedica a
D. Carlota Joaquina, no ano de 1792. Talvez não tivesse sido irrelevante, por
aqueles anos, o facto de a então Princesa do Brasil ser sobrinha da rainha
Carolina, na ocasião, sua protectora, já que, às autoras, face à dificuldade de
acesso ao mercado editorial, era vantajosa a tutela mecenática, para a
participação num campo, essencialmente, masculino.
La Fuga in Egitto Oratório Sagro dedicato a S.A.R. D. Carlotta Borbone, Principessa del Brasile, assinado “Da D. Eleonora de Fonseca Pimentel Chaves, Napoli 1792”[7].
Mary Wollstonecraft. Escritora, pioneira de uma escrita no
feminino, tal como Leonor, teria uma vida recheada de incidentes e de infortúnios.
A estes, responderia com a criatividade literária que a levou a redigir
inúmeros textos na defesa dos direitos das mulheres, ora em ensaios, ora na
forma de novelas de tom moral, ora em forma de cartas de pendor sentimental. A
sua primeira publicação Thoughts on the
education of Daughters: With Reflections on Female Conduct, in the more
Important duties of life (1787) é, no título, eloquente quanto ao objectivo da defesa da causa da educação formal das raparigas; seguindo-se, entre
outras edições, A Vindication of the
Rights of Men, em 1790; A Vindication
of the Rights of Woman, no ano de 1792; An
Historical and Moral View of the Origin and Progress of the French Revolution,
em 1794; e, Letters Written During a
Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark, em 1796[11].
Este último livro, em
forma epistolar, parecia ir ao encontro dos interesses dos “leitores setecentistas
pelas narrativas de viagem – imaginárias ou reais, escritas por personagens
inventadas ou por figuras notórias, instaladas entre a ficção e a reportagem, a
crítica social e o aprendizado do mundo”[12],
alcançando a autora, com este tipo de
escrita, um enorme sucesso editorial.
Se nas obras iniciais, em forma de ensaios, o lado racional prevalecera, as Cartas (…), na forma “plausível” como Wollstonecraft equilibrara a “reflexão racional e expressão autêntica dos sentimentos e das sensações”[13], inauguravam um estilo literário sentimental que abriria as portas à literatura romântica. Tal como a sua quase contemporânea napolitana, Mary morrerá jovem, após o nascimento de sua segunda filha.
Extracto das Cartas de Maria Wollstonecraft, relativas À Suécia, Noruega, e Dinamarca e huma breve notícia de sua vida oferecidos ao Bello Sexo Portuguez, Lisboa, 1806. BA 20-II-36.
A BA possui no seu acervo a obra Extracto das Cartas de Maria Wollstonecraft, relativas À Suécia,
Noruega, e Dinamarca e huma breve notícia de sua vida oferecidos ao Bello Sexo
Portuguez, por Henrique Xavier Baeta, datada de 1806 e que integra o Catálogo da Livraria de D. Carlota
Joaquina, demonstrando uma atenção, por parte da soberana, à actualidade
literária, e à escrita no feminino. Na introdução, o médico-autor apela a uma
ideia cara ao Século das Luzes, isto é, a defesa da educação como modo de
alcançar o progresso social, para o qual, o papel das mulheres como primeiras
pedagogas de seus filhos, seria fundamental. Tal asserção leva-o a questionar “(…)
como será a mulher ignorante capaz de educar seus filhos?”, contrariando as
ideias de Rousseau, que cita, defendera no seu Emílio que “Aquellas que passão a vida trabalhando para ganharem o
sustento, limitão suas idéas ás do trabalho e do lucro, e todo o seu
entendimento como que reside nas pontas dos dedos”[14],
afastando-as de cargos e funções públicas. Num tempo de acesos debates quanto
ao papel social da mulher que dominaram setecentos, não deixa de ser questionável e contraditório com as ideias de "progresso social", o papel que alguns filósofos da Ilustração
destinavam às mulheres.
Henrique Xavier Baeta, no seu prólogo, afastando-se da
influência de Rousseau, enaltece a memória de Wollstonecraft, “a qual
declarando-se huma firme defensora dos direitos das mulheres, assim as convida
a exercitarem sua razão”, citando a autora - “se a sabedoria se faz desejável
por si mesma, se a virtude, para merecer este nome, se deve apoiar nos
conhecimentos, procuremos fortificar o espirito pela reflexão, até que a nossa
cabeça equilibre o coração; não limitemos todos os pensamentos ás triviais
occurrencias do dia, ou todo o saber ao simples exame dos corações dos amantes
ou maridos (…)”, numa afirmação plena do direito das mulheres a se cultivarem, não
só por serem as primeiras mestras de seus filhos, mas para seu enriquecimento
próprio e satisfação pessoal[15].
Muito deve a mulher do século XXI ao papel desempenhado por
estas damas, no campo social, político e cultural, enquanto pioneiras na
afirmação da cultura no feminino.
MMB
Thesouro de Meninos / Pedro Blanchard. Lisboa, 1817
BA 35-II-56
(Continua)
[1] PIMENTEL, Leonor da Fonseca, “La Fuga in Egitto Oratório Sagro dedicato a S.A.R. D. Carlotta Borbone, Principessa del Brasile”, ms. BA 54-X-11 (27).
[2] HERCULANO, Alexandre, Opusculos, Tomo IX, 2ª edição, Lisboa, 1898, p. 277. BA 119/120-B-91.
[3] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Leonor_da_Fonseca_Pimentel. Consulta em 28.02.23.
[4] BA 54-X-11 (27). Ver PEREIRA, Sara Marques, «“La Fuga in Egitto” - Oratória Sagrada oferecida a D. Carlota Joaquina de Bourbon (1792, Pretexto de um texto – Nota Histórica», in Leonor da Fonseca Pimentel . A Portuguesa de Nápoles (1752-1799), coord. SANTOS, Maria Teresa; PEREIRA, Sara Marques, Livros Horizonte, 2001, p. 115-135, no qual a autora transcreve o texto da Oratória.
[5] BA 51-XIII-7.
[6] URGNANI, Elena, “A obra literária de Leonor da Fonseca Pimentel”, in Leonor da Fonseca Pimentel . A Portuguesa de Nápoles (1752-1799), coord. SANTOS, Maria Teresa; PEREIRA, Sara Marques, Livros Horizonte, 2001, p. 163.
[7] BA 54-X-11 (27).
[8] OLIVEIRA, Américo Lopes; VIANA, Mário Gonçalves, Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis, Lello § Irmão, 1967, pp. 1063-1064.
[9] Ver URGNANI, Elena, obra cit., 2001, p. 171.
[10] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mary_Wollstonecraft. Consulta no dia 28.02.23.
[11] MARQUES-PUJOL, Mariana Teixeira, Pensar o sensível: o exemplo das Cartas Escritas Durante uma Breve Residência na Suécia, na Noruega and Denmark (1796), by Mary Wollstonecraft, Revista Enunciação- ISSN: 2526-110x- 2º semestre de 2017 – vol. 2 – Nº 2 – pp. 57-75, p. 62.
[12] Idem, Idem, p. 67.
[13] Idem, Idem, p. 68.
[14] BAETA, Henrique Xavier, Extracto das Cartas de Maria Wollstonecraft, relativas À Suécia, Noruega, e Dinamarca e huma breve notícia de sua vida oferecidos ao Bello Sexo Portuguez, Lisboa, 1806, p. VI. BA 20-II-36.
[15] Idem, Idem, pp. XVII-XVIII.
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