Alexandre Herculano e a Real Biblioteca da Ajuda

“Um grande edifico, fosse qual fosse o destino que o seu fundador lhe quisesse dar, é sempre e de muitos modos um livro de historia” (Opúsculos / Alexandre Herculano)

Escrevia, em 1965, Mariana Machado Santos, directora da Biblioteca da Ajuda (1954-1974), que há muito estava “em aberto uma dívida para com um dos maiores pensadores e trabalhadores da nossa Pátria que chefiou e orientou durante trinta e oito anos a “Real Biblioteca de Sua Magestade[1]. Referia-se a Alexandre Herculano que, de 1 de Agosto de 1839 a 13 de setembro de 1877, desempenhara funções como “Bibliotecario-Mor de Sua Magestade El-Rei”, na Biblioteca anexa ao Paço Velho da Ajuda.

Este texto, a propósito do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, tem como base o levantamento sobre a obra de Alexandre Herculano na Biblioteca da Ajuda, bibliografia activa e passiva, efectuado pela Dr.ª Conceição Geada, ao longo da sua longa e profícua carreira na instituição.

Quisemos evocar Alexandre Herculano (1810-1877), não apenas pelo seu trabalho de organização e engrandecimento da Real Biblioteca, que foi imenso, mas, de igual modo, pelas suas reflexões sobre a sociedade portuguesa de oitocentos, enquanto polemista empenhado na regeneração pátria, nas quais se incluem as páginas que dedicou à salvaguarda dos Monumentos Pátrios, os “livros de pedra”, incluídas nos seus Opúsculos[2], e ainda de uma actualidade indelével.

Na sua obra Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, Mariana M. Santos elencou alguns factos pelos quais o historiador ficara ligado à história da instituição pois, apesar de não ter acompanhado a mudança para as novas instalações, na ala norte do Palácio novo, em 1880, onde actualmente se encontra, deixará, no entanto, uma marca perene na sua organização.


 




Casa de Alexandre Herculano anexa à Livraria do Paço Velho da Ajuda, junto à  torre da antiga Patriarcal (Foto de Alberto Carlos Lima, in: AFCML)


O acervo da Biblioteca da Ajuda, pelo seu lado, constituirá uma fonte documental relevante para a obra de Herculano, que no seu “eremitério”[3], mantêm um “diálogo criativo e insubmisso”[4], com a documentação manuscrita que tem à sua guarda, a qual lhe serve, quer para a sua obra de historiador, quer de inspiração para a sua produção literária de carácter ficcional.


O Cancioneiro da Ajuda:

A Alexandre Herculano se deve a integração de umas “folhas avulsas”[5], no então denominado “Cancioneiro do Collegio dos Nobres”, códice que apesar de truncado, era já então considerado como “um dos mais preciosos manuscritos da Coroa que se encontrava desde 1832”, na Real Biblioteca da Ajuda, proveniente daquela instituição pedagógica pombalina. Os onze fólios localizados na Biblioteca de Évora, que por iniciativa de Herculano, se juntavam ao original, completando-o, tornaram-no no mais antigo conjunto de textos poéticos compostos por trovadores galego-portugueses. Constituído por 310 cantigas de 38 autores, “códice vetusto e venerando que encerra os monumentos primevos da arte lírica peninsular”, nas palavras de Carolina Michaelis[6], tesouro nacional à guarda da Biblioteca da Ajuda (BA), foi um lugar de memórias que Herculano revisitou para a sua escrita.

O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, fragmento apenso ao Cancioneiro, será publicado por Herculano na obra Portugaliae Monumenta Historica[7]. Do Cancioneiro retirará, ainda, versos de Pero da Ponte, (cantiga 292) que incluirá em O Monge de Cister.


[Livro das Linhagens de D. PedroConde de Barcelos]:

Integrada nas Lendas e Narrativas, A Dama Pé de Cabra tem como fonte o [Livro das Linhagens de D. Pedro, Conde de Barcelos], cópia manuscrita do séc. XVI, proveniente da Biblioteca dos Oratorianos das Necessidades, códice igualmente à guarda da BA[8]. Naquela, o narrador introduz-nos no ambiente temporal no qual decorre a lenda, alertando o leitor que a razão pela qual a vai contar “é porque a li num livro muito velho”[9], invocando a sua relação com contextos literários medievos.

Devem ainda ser destacadas, dentro da imensa produção literária de Herculano, duas obras marcantes no panorama da investigação historiográfica oitocentista:

Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal[10], para a qual utilizou núcleos documentais insertos no acervo da BA.















[Anais de D. João III]
, manuscrito autógrafo de Fr. Luís de Sousa[11] que Herculano publica[12] a partir do original da BA.


Mas se a obra de Herculano reflecte o seu interesse pelos “monumentos das epochas anteriores” nas “diversas espécies nos próprios originais ou cópias coevas”, não deixou de ser um intelectual interessado nas questões do mundo seu contemporâneo, batendo-se pelas suas convicções políticas, com as quais defendeu a sua “utopia municipalista[13], de autonomização dos municípios, do poder central. 

Conciliando as suas ideias com a vontade de as pôr em prática, concorre nas eleições municipais, em novembro de 1853, sendo eleito Presidente da Câmara Municipal de Belém, entre 1854-1856.

Monumentos Patrios. Não menos relevantes foram os seus artigos acerca da questão da preservação dos monumentos arquitectónicos que deram origem a escritos incisivos, nos quais denunciou a incúria face à ruína e à degradação, às quais os vestígios venerandos da nossa história eram votados, numa sociedade deslumbrada com os desígnios do “progresso”.“Livros de pedra”, documentos eles também, que via desabar à sua volta, fruto da ganância especulativa, e que o levaram a escrever palavras fundacionais de uma consciência patrimonial em Portugal, e a proclamar, no artigo “Monumentos Patrios, de 1838”- “contra a índole destruidora dos homens de hoje que a razão e a consciência”, escrevia, o forçavam a ele “a erguer a voz e a chamar, como o antigo eremita, todos os ânimos capazes de nobre esforço para nova cruzada”, para a qual propunha se erguesse “um brado a favor dos monumentos da historia, da arte da gloria nacional, que todos os dias vemos desabar em ruinas”[14].

Quis Herculano que a História fosse “cousa mais séria e grave do que a narração exclusiva de dois casamentos, quatro enterros, e seis batalhas[15], como escrevia na introdução do Portugaliae Monumenta Historica, e “fosse uma verdadeira sciencia que habilite o presente e o futuro para tirarem lições do passado”.

Foi esse o seu imperativo moral, a sua cruzada cívica, e de certo modo utópica, que revelava a natureza poética e “romântica” do seu pensamento, na busca de modelos e acontecimentos de um passado longínquo, que o levou a procurar “um refúgio lustral”, sobretudo na Idade Média, “época a que atribuía sentimentos vigorosos e de um sadio crescer social”[16], confessando na Introdução de O Bobo: “No meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio”[17].

O espírito de missão que norteou o trabalho de Alexandre Herculano fez com que legasse, às gerações futuras, o fruto das longas horas que passou “desenterrando diariamente do pó das bibliotecas e dos archivos monumentos desconhecidos”[18].

A sua procura de um passado plural, múltiplo e rico de propostas, aberto generosamente ao futuro, complexo, diverso e informado e que nos permite rejeitar leituras anacrónicas, pobres e redutoras da História, é a lição magistral, que nos deveria obrigar à (re) leitura da obra de Alexandre Herculano.

MMB

(BA)


[1] SANTOS, Mariana A. Machado, Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, Separata de O Instituto, Vol. CXXVII, Coimbra, 1965, p. 4. - Acessível em, https://digitalis-dsp.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v127-1/UCBG-A-24-37a41_v127-1_item1/P138.html

[2] HERCULANO, Alexandre, Opusculos, Lisboa, 1897-1907, BA 119/120- B-82 a 92. Acessível em, https://purl.pt/718/4/

[3] Pato, Bulhão, Memórias. - Lisboa : Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894-1907. - 3 vol. ;Acessível em, https://archive.org/details/memorias01bulhuoft/page/190/mode/2up?view=theater

[4] COSTA, Fernando Gil, “Herculano tradutor e intérprete do Romantismo europeu”, in Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013. Acessível em https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/12594.pdf.

[5] SANTOS, Mariana A. Machado, Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, Separata de O Instituto, Vol. CXXVII, Coimbra, 1965, doc. reproduzido p.42.

[6] VASCONCELOS, Carolina Michaelis, Cancioneiro da Ajuda. - Lisboa : Impr. Nac. - Casa da Moeda, 1990. Início da Adverténcia Preliminar que abre o primeiro volume. BA. Usuais

[7] HERCULANO, A., Portugaliae Monumenta Historica, Lisboa, 1856, BA 135-III-31 a 35.

[8] Livro das Linhagens de D. Pedro, Conde de Barcelos, BA. Cod. 47-XIII-11.

[9] HERCULANO, A., Lendas e Narrativas, Emp. Diário de Notícias, Lisboa, 1920, Tomo II, p. 7. BA 141-II-1 e 2.

[10] HERCULANO, A., Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Imprensa Nacional, Lisboa,1854, BA 52- VI-33 a 35.

[11] BA Cod. 50-V-33.

[12] HERCULANO, A., Annaes de D. João III por Fr. Luiz de Sousa, Lisboa, 1844, BA 52-VII-15

[13] SARAIVA, José António, Herculano Desconhecido, Publicações Europa-América, 2ª edição, 1971, p. 47.

[14] HERCULANO, A., “Monumentos Patrios”, Opusculos, Tomo II, Lisboa, 1907, p. 10. BA 119/120-B-83

[15] HERCULANO, A., “Apontamentos para a Historia dos Bens da Coroa e dos Foraes”,Opusculos, Tomo III, Lisboa 1897, p. 281. BA 119/120-B- 90.

[16] MONTEIRO, Ofélia Paiva, “Herculano :Da arte narrativa do ficcionista”, in Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013, p. 10. Acessível em https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/12594.pdf.

[17] Herculano, A., O Bobo, Livraria Bertrand, s/data, p. 10. BA 135/136-J-85.

[18] HERCULANO, A., Portugaliae Monumenta Historica, vol. I, Lisboa, 1856, BA 135-III-31

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