Cultura e o ensino científicos na corte joanina do Rio de Janeiro: um testemunho

Um manuscrito que integrou a que foi outrora a livraria da Rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon - Catálogo da Livraria que foi de S. Mag.de a Senhora D. Carlota Joaquina de Bourbon (cód. 51-XIII-7)revela-nos algumas informações sobre os primórdios do ensino científico na corte Joanina, do Rio de Janeiro:  
Intitulado “Primeiro dia do Curso sobre Chymica para ser feito em Presença de S.A.R. o Príncipe Regente Nosso Senhor, e da Sua Augusta e Real Família, pelo Doutor Daniel Gardner, formado em Medicina” (Ms. Av. 54-VI-14, n.º 87), não se encontra datado, nem informa sobre o local de sua redacção. Feita alguma pesquisa a partir da identificação do médico encarregue da docência, foi possível obter alguns esclarecimentos sobre o significado mais amplo deste documento.
 
De facto, Daniel Gardner (1785-1831), médico inglês, integrara a “Academia Real Militar”, criada por carta régia de 4 de dezembro de 1810, no Rio de Janeiro, por inspiração do ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812),futuro Conde de Linhares,com o objectivo de promover o ensino das ciências matemáticas, da física da química, da mineralogia, metalurgia e história natural, daquela que seria a semente para a “institucionalização do ensino das ciências no Brasil”[aqui]. As aulas de Química seriam ministradas no quinto ano do curso e o Dr. Gardner, cidadão britânico, era nomeado lente responsável pelo seu ensino, auferindo um salário anual de 600$000, devendo 100$000 corresponder a gastos com demonstrações práticas. O decreto facultava ainda ao professor ministrar outros "cursos além dos que for obrigado a dar na Academia Militar" (Santos, Nadja Paraense dos; Filgueiras, Carlos Alberto Lombardi, “Daniel Gardner, autor do primeiro livro de química brasileiro, um desconhecido”)
A presença Dr. Gardner no Rio de Janeiro era, no entanto, anterior àquela data, pois desde 1809 que o mesmo leccionava Química no Seminário de S. Joaquim, contribuindo ainda para a divulgação dos conhecimentos sobre aquela ciência mediante a realização de palestras que anunciava na Gazeta do Rio de Janeiro, nos anos de 1810-1811, sendo os anúncios acompanhados da informação de que o Príncipe Regente D. João(1767-1826) e a Família Real, já teriam presenciado as experiências físicas e químicas, que as mesmas seriam repetidas e, novidade, que estariam abertas à participação das senhoras - “as senhoras serão admitidas” lê-se na Gazeta do Rio de Janeiro (n.º 51, 26 de Junho de 1811).
 

 n.º 51, 1811
 
 
 
O manuscrito da Biblioteca da Ajuda (Ms. Av. 54-VI-14, n.º 87), que pertenceu à livraria da Rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830) enuncia o sumário de cada uma de três aulas que, presumimos, integrariam o mencionado Curso de Química, sendo que apenas no primeiro se mencionam as presenças régias. De acordo com os resumos apresentados no referido manuscrito o primeiro dia seria dedicado a “Explicação da significação do termo – Chymica - seus principais objectos, utilidade, e História, analyses e sintheses”;

 
o segundo dia “Sobre a Electricidade” versando “Observações sobre a particularidade deste fluido. Hum fluido, seus géneros, e meios activos no laboratório da Natureza. Descripção da Maquina electrica. Fluido electrico produzido por meio de fricção”;

 
e no terceiro dia dedicado “A Sciencia Pneumatica”, apresentada como “a doutrina do ar, incluindo suas propriedades mecânicas e químicas”
  




Com estas iniciativas se davam os primeiros passos para o ensino da Química no Brasil, segundo os preceitos científicos mais avançados e baseado em experimentalismo laboratorial, estudos estes incentivados pelo Príncipe Regente D. João que, com a sua participação no laboratório do eminente cientista, bem como da Família Real, mais não fazia do que creditar as suas aulas e aquele ensino.
 

O Dr.Gardner seria ainda o autor do primeiro livro de Química publicado no Brasil, pela Impressão Régia, em 1810, dedicado ao Príncipe Regente, "Syllabus ou Compendio das Lições de Chymica", e que era, na sua essência, “um programa comentado de seu curso”. O médico inspirara-se na obra de A. F. Fourcroy que na sua tradução recebera o título “Filosofia Química ou Verdades Fundamentaes da Química Moderna”, (BA- 37-VII-40), obra traduzida por Manoel Joaquim Henriques de Paiva, e impressa em Lisboa no ano de 1801, e que em dezembro de 1816, fora “recomendado para o futuro ano escolar”, sendo, então, “considerado o primeiro compêndio adotado oficialmente num curso regular de Química no Brasil” (Nadja Paraense dos Santos; Carlos A. L. Filgueiras- “O primeiro curso regular de química no Brasil”, São Paulo  2011)

A divulgação desta disciplina e a curiosidade que despertara entre uma camada social ávida de conhecimentos, talvez fosse a razão para encontrarmos no Catálogo da Livraria de D. Carlota Joaquina, além do manuscrito contendo o sumário de parte das lições do Dr. Gardner, esta obra do químico francês Antoine François de Fourcroy (1755-1809), na sua tradução portuguesa.
 

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n.º 51, 1810


n.º 74, 1811

n.º 60, 1811
MMB




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