Ramalho Ortigão (Porto, 1836 - Lisboa, 1915); Director da Biblioteca da Ajuda (1895 -1911)



RELATÓRIO de Ramalho Ortigão, director da Real Biblioteca da Ajuda, enviado a el-rei D. Manuel II.
18 fls. - Ms. s. papel tarjado com cercadura a negro e com timbre da ‘‘Real Bibliotheca da Ajuda’’ com as armas reais nos 9 folios (f. ímpares).

[f.1r.]   [RELATÓRIO]
 
Ajuda Março 1908
 
Meu Senhor
Na qualidade de bibliothecario de El Rei o Senhor D. Carlos que Deus tenha na gloria imperecivel, cumpro neste papel o doloroso dever de dar conta a Vossa Magestade do desempenho das minhas funções na direcção da Real Bibliotheca da Ajuda.
Para esse effeito me permitto expôr em sucinto relatorio qual o modo [como (sobreposto)] encontrei organizada a Real Bibliotheca, e qual o estado em que neste momento me cabe // [f.1v.] a honra de a entregar a Vossa Magestade.
Perante o culto espírito de Vossa Magestade, que, bem recentemente ainda visitava como príncipe esta Casa, patenteando pela sua origem, pela sua função e pelo seu destino o mais esclarecido interesse, inutil recordar aqui a gloriosa história da Bibliotheca Real e da alta influencia que ella tem exercido na evolução da mentalidade portuguesa e no fecundo prestigio litterario que teve no mundo a nossa pequena patria. //
[f.2r.] Desaparecera destruida pelo terremoto de 1755 a primitiva livraria régia, a esse tempo estabelecida na casa chamada do Forte nos Paços da Ribeira, e composta das obras de princípio  certamente colligidas pelo sabio Rei trovador D. Diniz; depois pelos reis e príncipes poetas, escritores e bibliografos D. João 1º, D. Duarte, o infante D. Pedro, o infante D. Henrique, e D. Affonso V; pela rainha D. Leonor, que tão devotamente patrocinou a introdução da tipografia em Portugal; por El Rei D. Manoel, que com tanta magnificencia enri//queceu [f.2v.] a nossa coleção de illuminuras; pelo infante D. Fernando, do qual Damião de Goes, o grande amigo d’Erasmo, de Dürer e dos mais gloriosos humanistas da Renascença, era o agente litterario e artistico na Flandres, na Alemanha, na Italia e nos paizes setentrionaes da Europa; pela rainha D. Catharina e por D. João III, cujas copiosas colleções se reuniram em Evora; por D. João IV, cuja livraria de musica foi a primeira do mundo; por D. João V finalmente, que pelo // [f.3r.] dispendioso inquerito a que mandou proceder nos Cartorios de Roma formou o importante repositorio Rerum lusitanicarum collectio generalis, que felismemente se conserva ainda entre os manuscritos de Vossa Magestade.
Logo depois do terremoto, com os primeiros trabalhos da reedificação de Lisbôa, é reconstituida a Bibliotheca Real em casas provisorias para esse fim construidas junto da egreja de que ainda existe a torre do relogio. //
[f.3v.] Para ter conhecimento das relações da contiguidade entre a Bibliotheca e o Paço da Ajuda convem conhecer nas suas linhas geraes a historia das reedificações deste palacio. Existia anteriormente ao terremoto um palacio real no alto da Ajuda, a oeste da calçada do mesmo nome e junto do Jardim Botanico. Esse edificio, de que ainda existem fragmentos, era uma habitação suplementar, especie de Casa de Campo ou de recreio da família real, ordinariamente residente no Paço da Ribeira. Depois do abalo de terra e do subsequente incendio que destruiu o Paço // [f.4r.] da Ribeira, reconhecendo-se que o Paço da Ajuda não offerecia acomodações suficientes para residencia permanente da família real, edificou-se um palácio provisorio, quase completamente de madeira, de forma abarracada, mas esmeradamente ornamentado. Pelo mesmo tempo se edificara a Bibliotheca, a que o Paço Abarracado se ligava por um passadiço. Este palácio  foi devorado por um incendio no dia 10 de Novembro de 1794, salvando-se a bibliotheca por se haver oportunamente cortado o passadiço que a punha em contacto com o palácio incendiado. Logo // [f.4v.] no anno seguinte (1795) se lançou a primeira pedra do palacio monumental que ao presente existe, refasendo-se o passadiço de communicação com a casa da livraria.
Nessa casa se depositaram, desde que ella se edificou e d'ahi por deante, juntamente com as raras peças da Bibliotheca d'El Rei e da Bibliotheca do Infantado salvadas do Cataclismo, livros de diversas procedencias: os da excellente livraria de Barbosa Machado por elle offerecida a El Rei D. Jose; [os da livraria (riscado)] // [f.5r.] os da livraria de Nicolau Francisco Xavier da Silva, comprada por El Rei; os da livraria do Conde de Redondo, e os confiscados aos Jesuitas e aos fidalgos julgados cumplices no atentado contra a vida de El Rei D. José; etc. Foi esta copiosa e rica colleção que em 1811 o Principe Regente mandou ir para o Brazil juntamente com a dos manuscritos da coroa a esse tempo arrecadados no Convento das Necessidades. Os manuscritos voltaram quase integral//mente [f..5v.] para Lisboa a seguir ao regresso da familia real, e são os da actual collecção da Ajuda. Os impressos, em numero de cerca de 60 mil, ficaram em sua quasi completa totalidade no Rio de Janeiro, onde constituiriam o fundo da Bibliotheca Nacional, destinando-se os duplicados a nucleo da Bibliotheca da Bahia. Juntamente com os livros da Bibliotheca Real da Ajuda ficaram no Brazil numerosas tapeçarias, alfombras e panos de armar, de alto valor, ali completamente destruidos e reduzidos a pó pelo bicho cupim. Entre os livros foi mais tarde // [f.6r.] encontrada pelo bibliothecario brasileiro Ramiro Galvão uma preciosa colecção de gravuras de Alberto Dürer.
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