Comemorou-se, em 2023, o encontro histórico dos portugueses com os japoneses há 480 anos. De entre “a gente ousada” que concretizou esta chegada do Ocidente ao Extremo Oriente, excetuando os óbvios marinheiros e comerciantes, foram os padres da Companhia de Jesus que mais contribuíram para o conhecimento mútuo inicial das duas civilizações. Assim, as primeiras ‘relações’ de visu da geografia e costumes japoneses chegam à Europa através da publicação das cartas dos missionários, iniciando um novo tipo de leitura que, desde o início, teve uma adesão extraordinária dos leitores europeus. A preponderância portuguesa nesta aventura inicial da missionação, não pelo número de missionários de nacionalidade portuguesa, mas pelo papel central que desenvolvemos na navegação, acesso e fixação no Extremo Oriente graças em boa parte à nossa centralidade no universo católico da época, conferida pelo Padroado Português do Oriente e cuja concretização se manifesta na formação coimbrã (Colégio das Artes) dos missionários e no seu acesso (obrigatório) através de Macau.
O conhecimento do outro, em geral, exige a compreensão do seu contexto cultural específico o qual é grandemente facilitado e aprofundado pelo conhecimento da língua, uma das expressões materiais maiores da cultura de um povo. A evangelização, que presidia como objetivo expresso à missionação, implicava a transmissão verbal de conceitos alheios ao contexto cultural, religiosidade e racionalidade japoneses, bem como, simultaneamente, exigia uma reflexão sobre os mesmos e a forma de os traduzir – a limite sempre para latim, língua de formação obrigatória dos noviços, mas que era ainda para muitos missionários, especialmente os padres formados localmente, uma língua estrangeira. É aqui, na necessidade de se divulgar uma religião transmitida por palavras e a partir de um livro, que se compreende a propagação de materiais escritos – manuscritos ou impressos – relativos ao cristianismo e aos seus dogmas principais que, sob a forma de catecismos ou “artes da língua” - proliferaram desde o primeiro momento. Mas estas obras de divulgação e devoção exigiram a sua tradução para as línguas naturais, destacando-se neste processo inicialmente os da Índia ao Japão. A sobrevivência de alguns destes exemplares de obras complementares e fundacionais (dicionários, artes e catecismos) em relação aos textos canónicos e devocionais demonstram ainda hoje o trabalho e esforço de compreensão intercultural que a chegada ao Extremo Oriente impôs.
Destacaremos aqui no blogue 4 desses exemplares, da coleção à guarda da BA, com características diversas, mas produzidos entre 1590 e 1632, que são expressão da produção linguística histórica no Japão ou para o Japão. Destes, começamos hoje com 2 manuscritos com proveniência e características distintivas idênticas.
BA 46-VIII-35 – Vocabulario da lingoa de Iapaõ com a declaração em Portugues, feito por alguns Padres, e Irmaõs da Companhia de IESV. / Com licença do Ordinario, e Superiores em Nangasaqui no Collegio de Japaõ da Companhia de Jesvs. Anno de 1593.
Está tresladado do L.º emprensso q/ esta na Secretaria da Provincia de Japaõ no Coll.º de Macao, hoje 22 de Agosto de 1747. Joaõ Álvares.
BA 46-VIII-35, lombada.
Como advertido no rosto, trata-se aqui de um Vocabulário da língua japonesa com a explicação dos vocábulos em português através da remissão para os seus correspondentes traduzidos vocabularmente ou parafraseados em explicitações textuais. Esta necessidade de evocar um conjunto de sinónimos e, por vezes, uma construção metalinguística foi o modo encontrado de ultrapassar as variações linguística do japonês que se constituem em estilos formais diversos, nas utilizações específicas de uma comunidade ou espaço geográfico e “por ser a lingoa de Japaõ muito abundante, e uaria no uso; sendo hum o estillo de cartas, outro o dos livros, outro o da pratica familiar, e outro o das pregaçoens. ...”. A extensão e variedade vocabular do japonês é associada a outros tantos obstáculos deste universo linguístico tão afastado das línguas europeias, para justificar no “Prólogo” quer o tempo necessário para o executar, quera adição de um Suplemento. Segundo o A. do prólogo, esta obra corresponde ao aperfeiçoamento de várias ‘artes’ e vocabulários manuscritos pré-existentes na Província do Japão, pelos quais os PP. e Irmãos recém-chegados aprendiam o japonês que, cerca de 50 anos após a chegada dos portugueses, ainda era considerada uma língua difícil de aprender, mesmo na oralidade. Sem incluir os caracteres da escrita japonesa – mas sim os vocábulos apresentados pela sua transliteração em alfabeto latino – e com isso evidenciando a necessidade prioritária, evangélica e funcional, da oralidade vai buscar ao Dicionário de Latim já impresso (códice abaixo) a sua estrutura organizativa, aumentando em muito o seu conteúdo.