Hoje, 11 de Fevereiro, o Japão comemora o
Dia Nacional da [sua] Fundação. A mais de 10.000km de distância, a Biblioteca da Ajuda evoca neste dia as relações iniciais entre dois povos através de obras do seu acervo reservado que ilustram exemplarmente a dificuldade e esforço investidos nesse encontro de há quase 500 anos.
Comemorou-se, em 2023, o encontro histórico dos portugueses com os japoneses há 480 anos. De entre “a gente ousada” que concretizou esta chegada do Ocidente ao Extremo Oriente, excetuando os óbvios marinheiros e comerciantes, foram os padres da Companhia de Jesus que mais contribuíram para o conhecimento mútuo inicial das duas civilizações. Assim, as primeiras ‘relações’ de visu da geografia e costumes japoneses chegam à Europa através da publicação das cartas dos missionários, iniciando um novo tipo de leitura que, desde o início, teve uma adesão extraordinária dos leitores europeus. A preponderância portuguesa nesta aventura inicial da missionação, não pelo número de missionários de nacionalidade portuguesa, mas pelo papel central que desenvolvemos na navegação, acesso e fixação no Extremo Oriente graças em boa parte à nossa centralidade no universo católico da época, conferida pelo Padroado Português do Oriente e cuja concretização se manifesta na formação coimbrã (Colégio das Artes) dos missionários e no seu acesso (obrigatório) através de Macau.
O conhecimento do outro, em geral, exige a compreensão do seu contexto cultural específico o qual é grandemente facilitado e aprofundado pelo conhecimento da língua, uma das expressões materiais maiores da cultura de um povo. A evangelização, que presidia como objetivo expresso à missionação, implicava a transmissão verbal de conceitos alheios ao contexto cultural, religiosidade e racionalidade japoneses, bem como, simultaneamente, exigia uma reflexão sobre os mesmos e a forma de os traduzir – a limite sempre para latim, língua de formação obrigatória dos noviços, mas que era ainda para muitos missionários, especialmente os padres formados localmente, uma língua estrangeira. É aqui, na necessidade de se divulgar uma religião transmitida por palavras e a partir de um livro, que se compreende a propagação de materiais escritos – manuscritos ou impressos – relativos ao cristianismo e aos seus dogmas principais que, sob a forma de catecismos ou “artes da língua” - proliferaram desde o primeiro momento. Mas estas obras de divulgação e devoção exigiram a sua tradução para as línguas naturais, destacando-se neste processo inicialmente os da Índia ao Japão. A sobrevivência de alguns destes exemplares de obras complementares e fundacionais (dicionários, artes e catecismos) em relação aos textos canónicos e devocionais demonstram ainda hoje o trabalho e esforço de compreensão intercultural que a chegada ao Extremo Oriente impôs.
Destacaremos aqui no blogue 4 desses exemplares, da coleção à guarda da BA, com características diversas, mas produzidos entre 1590 e 1632, que são expressão da produção linguística histórica no Japão ou para o Japão. Destes, começamos hoje com 2 manuscritos com proveniência e características distintivas idênticas.
BA 46-VIII-35 – Vocabulario da lingoa de Iapaõ com a declaração em Portugues, feito por alguns Padres, e Irmaõs da Companhia de IESV. / Com licença do Ordinario, e Superiores em Nangasaqui no Collegio de Japaõ da Companhia de Jesvs. Anno de 1593.
Está tresladado do L.º emprensso q/ esta na Secretaria da Provincia de Japaõ no Coll.º de Macao, hoje 22 de Agosto de 1747. Joaõ Álvares.
BA 46-VIII-35, lombada.
Como advertido no rosto, trata-se aqui de um Vocabulário da língua japonesa com a explicação dos vocábulos em português através da remissão para os seus correspondentes traduzidos vocabularmente ou parafraseados em explicitações textuais. Esta necessidade de evocar um conjunto de sinónimos e, por vezes, uma construção metalinguística foi o modo encontrado de ultrapassar as variações linguística do japonês que se constituem em estilos formais diversos, nas utilizações específicas de uma comunidade ou espaço geográfico e “por ser a lingoa de Japaõ muito abundante, e uaria no uso; sendo hum o estillo de cartas, outro o dos livros, outro o da pratica familiar, e outro o das pregaçoens. ...”. A extensão e variedade vocabular do japonês é associada a outros tantos obstáculos deste universo linguístico tão afastado das línguas europeias, para justificar no “Prólogo” quer o tempo necessário para o executar, quera adição de um Suplemento. Segundo o A. do prólogo, esta obra corresponde ao aperfeiçoamento de várias ‘artes’ e vocabulários manuscritos pré-existentes na Província do Japão, pelos quais os PP. e Irmãos recém-chegados aprendiam o japonês que, cerca de 50 anos após a chegada dos portugueses, ainda era considerada uma língua difícil de aprender, mesmo na oralidade. Sem incluir os caracteres da escrita japonesa – mas sim os vocábulos apresentados pela sua transliteração em alfabeto latino – e com isso evidenciando a necessidade prioritária, evangélica e funcional, da oralidade vai buscar ao Dicionário de Latim já impresso (códice abaixo) a sua estrutura organizativa, aumentando em muito o seu conteúdo.
O manuscrito apresenta um aparente erro ao tresladar a data da sua manufatura em 1593, quando a investigação lexicográfica neste âmbito indica a data de 1603 – 1604 para a sua impressão em Nagasáqui. No entanto, as datas das folhas iniciais, onde se transcrevem a Aprovação e Licença dos superiores da Companhia no Japão, têm estas últimas datas registadas e também referidas. Com estes dados, será difícil pôr em causa o trabalho do copista que, no caso, é João Álvares, autor, revisor e coordenador das cópias que constituem o núcleo de documentos provenientes de Macau nos anos de 1744-1745 e enviados para a Procuratura da Província do Japão em Lisboa, estando por isto muito habituado a originais com lacunas. Este é a cópia ms. do Vocabulário impresso em 1603-1604 em Nagasáqui que corresponde ao aperfeiçoamento de outro(s) existente(s) eventualmente impresso em 1593 ou para tal preparado. Os textos introdutórios alertam claramente para esta situação, embora de forma pouco clara quanto à sua forma: “...dou Licença que se imprima o Vocabulário Japónico, feito agora de novo p.los nossos Padres.” (in “Licença”, com data de 2 janeiro 1603); ou ainda “... este Vocabulário Japonico feito agora de novo, e posto em orde[m] por algu[n]s Padres e Irmaons da nossa Companhia.” (in “Aprovação”, de 4 de Agosto de 1603)
O Prólogo, com as suas “advertências para o uso e inteligência deste Vocabulário” resume de forma muito expressiva o trabalho esforçado e coletivo da Companhia de Jesus nos anos iniciais no Japão cuja priorização do domínio da língua japonesa pelos PP. e Irmãos e do latim pelos neófitos, catequistas e cristãos em geral se materializou num conjunto de materiais linguísticos que a vinda do parque tipográfico, com o regresso da Europa dos 4 Legados japoneses dos Daimios que vieram a Roma (Portugal e Espanha), muito ajudou a divulgar e aperfeiçoar.
BA 46-XIII-11 e 12 –
Dictionarium Latino Lusitanicum, ac Iapponicum ex Ambrosii Calepini volumine depromptum: in quo omisis nominibus propriis tam Locorum, quam hominum, et qubusdam aliis minus usitatis. Omnes Vocabulorum significationes, elegantioris que dicendi modi apponuntur : in usum, et gratiam Japponicae Juventis, quae Latino idiomate perperam navat, Europeorum, qui Japponicum Sermonem addiscunt. - Namacusa in Collegio Japponico Soicietatis IESV cum facultate Superiorum. Anno de MDXCV [1595]
No anno de 1738 mandou o P.e Domingos de Britto da Companhia de Jesv Provincial da Provincia de Jappaõ tresladar o Dictionarium p.ª se mandar por na Procuratura da provincia de Jappaõ em Lisboa, [fim desta linha e seguinte riscadas, seguindo a anotação na fl. seguinte] ... O P. P[rocurad]or da provincia de Jappaõ em Lisboa não poderá emprestar este L.º senaõ guardallo na mesma Procuratura. O qual se manda em a Nao S. Pedro, e S. Joaõ em Janeiro de 1745. Macao 2 de Janeiro D 1745. [Assinatura do copista - João Álvares? - riscada].
O longo título deste dicionário remete para o seu émulo, conteúdo e propósito. Reconhecendo o exemplo a seguir no dicionário de Ambrogio Calepino, cuja primeira edição em latim, de 1509, é considerada o início desta tipologia de obras - léxicos e dicionários - e do seu sucesso editorial, os linguistas jesuítas conferem-lhe assim uma autoridade que o projeto de aproximação (e apropriação) ao Japão através da língua não poderia ainda alcançar por si. Excelentes retóricos, os jesuítas apelam à importância do ethos – da credibilidade assegurada por fontes respeitadas – quando é necessário persuadir da qualidade de um empreendimento.
Também o seu conteúdo, indicado no título, remete para um processo de aprendizagem contínua e aperfeiçoamento do domínio do japonês e do latim pelas duas comunidades em interação. Por um lado, sintetiza o conhecimento vocabular japonês excluindo os elementos que o complexificam, nomeadamente os nomes próprios geográficos e onomásticos que levantam maiores problemas de transliteração e tradução; por outro, dá-se aqui uma atenção particular à forma linguística superior, educada “
Omnes Vocabulorum significationes, elegantioris que dicendi modi apponuntur...”, e que adverte o leitor para a “elevação” relativamente ao exemplar de 1593, onde se plasmavam as variações dos significados populares e eruditos dos vocábulos. Por último, dizem-nos os PP. que este “edifício” literário é de primeira utilidade para 2 géneros de interlocutores, sintetizando numa frase a história do encontro civilizacional no Japão, há época com 50 anos: destina-se à juventude japonesa para melhorar o seu domínio do latim – abrangendo as conversões dos nobres japoneses, potenciais futuros catequistas e padres locais de qualidade - e o esforço diário de aprendizagem do japonês pelos padres jesuítas da Província do Japão.
O exemplar da Biblioteca da Ajuda é uma cópia finalizada em 1745, pelo Ir. João Álvares, do exemplar impresso existente na Procuratura do Japão, no colégio da Madre de Deus em Macau, pertencente ao conjunto de cópias - muitas únicas - promovido pela Academia Real de História e que se materializa hoje na coleção Jesuítas na Ásia e seus complementos documentais. A nota ms. marginal na 1ª folha dá conta do estado em que se encontravam muitos dos documentos guardados em Macau, cujas condições de humidade teriam deteriorado grandemente os originais, sendo por isso estas cópias exemplares da importância do resgate preventivo no trabalho dos arquivos e na preservação de fontes primárias em estado de consulta/leitura. Tendo sobrevivido muito poucos exemplares desta impressão de 1603-1604 [quatro apenas na Europa e Brasil] esta cópia apresenta-se como fonte primária de direito próprio, cujo estudo tem trazido conhecimento sobre a evolução da língua japonesa e do contexto histórico material dos séculos XVI e XVII em que foi produzida. A convicção da sua fiabilidade poderá ser acrescentada com o diálogo crítico da cópia com o seu original, fortalecendo o valor deste códice como fonte primária.
No próximo e final “capítulo” desta apresentação de exemplares da BA relativos ao Japão daremos notícia de dois impressos que complementam a “fotografia escrita” de um encontro entre 2 civilizações estranhas que, em poucas décadas, se compreenderam mutuamente numa epopeia de sucessos e obstáculos que é exemplar de um processo histórico de aculturação, alicerce basilar da globalização que hoje caracteriza o nosso mundo cultural.