D. João VI, entre a tradição e a modernidade

PNA Inv. 4115 Domingos A. Sequeira
D. João que seria coroado como o sexto do seu nome, nasce a 13 de maio de 1767, no Palácio Real da Ajuda, sucedendo a sua mãe, a Rainha D. Maria I (1734-1816), por um acaso do destino que ditara a morte de seu irmão mais velho D. José, Príncipe do Brasil, em setembro de 1788.

A regência e reino de D. João foram atravessados por profundas convulsões, quer familiares, que o levaram a assumir a regência, de um modo informal em 1792, e formalmente em 1799, por força da doença de sua mãe; quer políticas, decorrentes da Revolução Francesa de 1789, e das invasões napoleónicas que determinariam a transferência da corte para o Brasil, em 1807, acontecimento que o faria viver, e reinar, em dois continentes, de um lado e do outro do Atlântico, experiência singular que mais nenhum outro monarca do seu tempo experimentaria. Regressado ao velho continente, as revoltas liberais e as contrarrevoltas absolutistas desassossegaram a derradeira década da sua existência, vindo a morrer no Paço da Bemposta, em 1826.

A historiografia que abordou o legado de D. João haveria, de igual modo, de se dividir em dois campos diversos. Do lado de cá do Atlântico, a imagem caricatural que dele deixara a pena impiedosa de Oliveira Martins (1845-1894)[1] impor-se-ia na literatura e no imaginário nacional. Do lado de lá, no continente americano, Manuel de Oliveira Lima (1867-1927), diplomata, historiador e biógrafo brasileiro, levou a cabo a árdua tarefa de opor à caricatura uma sistematização do seu legado enquanto Regente, Rei e Imperador[2], ao qual o Brasil ficaria a dever a elevação a reino, em 1815, e a criação dos instrumentos de administração indispensáveis para que aquele território se tornasse uma nação independente, em setembro de 1822. Foi, assim, segundo este autor, D. João o “verdadeiro fundador da nacionalidade brasileira”[3].

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Vitrine 165
  169-VI-52, n.º 4
                                                      

No Brasil, com a chegada da Família Real e corte, em 1808, seriam replicadas na nova sede do reino, as instituições necessárias ao funcionamento do aparelho administrativo, de entre as quais sobressaem “os tribunais régios, da Mesa do Desembargo do Paço”, “as forças de segurança”[4], os estabelecimentos “económicos e financeiros ligados a funções de soberania: a Real Fábrica da Pólvora, o Banco do Brasil”, a Tipografia Régia. As instituições religiosas e de cultura viram renovado brilho. Avultava a Capela Real, “espaço onde se dava a conhecer a piedade e a grandeza dos monarcas portugueses”[5], bem como o teatro de ópera que ganhara novo espaço com Real Teatro de S. João, para cuja construção D. João chamara o arquitecto José da Costa e Silva (1747-1819) que fora já o autor do risco do Real Teatro de S. Carlos, de Lisboa.

Acresce Oliveira Lima que,  com a chegada da família Real ao Rio de Janeiro, no que toca à “propriedade real (…) vieram para o Brasil todas as pratas preciosíssimas cinzeladas pelos Germain; toda a formosa biblioteca organizada por Barbosa Machado, milhares de volumes reunidos com inteligência e amor, que constituíram o nucleo da nossa primeira livraria pública; até o prelo e tipos (…) mandados vir de Londres”[6].










 Registo do Expediente de Particular, ANTT Casa Real 2979[7].


Apesar de os mais recentes biógrafos de D. João, Pedreira e Dores, reconhecerem que “a transferência da sede da monarquia para o Rio de Janeiro determinou a criação ou a reforma de instituições culturais que ou não existiam ou tinham uma expressão relativamente modesta”[8], não deixam, no entanto, de afirmar que o príncipe não manifestara “grande interesse pelo incentivo das artes, com a excepção da música, a única, na tradição da família, em que tinha verdadeiro gosto”[9], o que, face aos testemunhos legados, nos parece pouco justo. Se a música era a expressão artística com a qual o monarca, porventura, melhor se identificava, sendo sinal desse gosto melómano e informado as inúmeras iniciativas a que se dedicou em vida, desde o apoio aos músicos e compositores tanto na corte lisboeta, como na carioca, à contratação dos mais célebres músicos italianos, à compra de instrumentos musicais e partituras, das quais a Biblioteca da Ajuda dispõe de uma importante colecção, quanto às outras manifestações culturais, sem ser nosso propósito fazermos neste local um levantamento sistemático, deixamos nota de algumas iniciativas que se devem ao Regente e Rei.


                             

Zaira / Bernardo de Sousa Queiroz

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A contratação de José da Costa e Silva, após formação em Itália, para onde fora como bolseiro régio, para o traçado do Real Palácio da Ajuda, na sequência do incêndio que devorara o Paço de Madeira, em 1794, determinou uma mudança de paradigma na prática arquitectónica que viu definitivamente arredada a linguagem barroca e rocaille, substituída pela “incorporação do neoclassicismo nos programas de representação da corte”[10], tanto nas novas residências como nos principais teatros régios, em ambas as cortes; não menos importante foi o apoio que o monarca dispensou ao programa de Pina Manique para a formação de artistas em Roma, sendo aí criada a Academia de Portugal, oficialmente fundada em 1791, do qual beneficiaram pintores de projeção internacional, como Domingos António Sequeira (1768-1837), ou Francisco Vieira, Portuense (1765-1805), nomeados ambos pintores régios, para as obras do Real Palácio da Ajuda, em 1802.


Palácio da Ajuda, alçado principal / José da Costa e Silva, 1802; BA reg. 7518 

Tributamos, de igual modo, a D. João o acolhimento, em 1816, no Rio de Janeiro, da Missão Artística Francesa, chefiada por Joaquim Lebreton (1760 - Rio de Janeiro 1819), que integrava artistas e uma colecção de pinturas, para o ensino na futura Academia Imperial de Belas Artes que sucedera à Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, fundada por decreto do Regente, em de 12 de agosto de 1816[11], cuja fundação anteciparia a Academia de Belas Artes de Lisboa, em duas décadas, e que em muito contribuiria para a renovação do ensino das belas artes, e a qualificação arquitectónica e cultural da capital brasileira.
















Estatutos da Imperial Academia e Escola das Bellas Artes, 1820 [12]










Retrato de D. João VI, óleo sobre tela, MNBA, por Jean-Baptiste Debret (1768-1848), um dos artistas que integrou a Missão Francesa no Rio de Janeiro


De regresso à Europa, ao abandonar o Rio de Janeiro, em 1821, D. João ali deixou não só a sua própria colecção de pintura, incorporada no Museu Nacional e posteriormente, em parte, na Pinacoteca da Academia Imperial de Belas Artes, núcleo fundador do actual Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, bem como a Biblioteca Real, núcleo original da actual Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o que levou Lilia M. Schwarcz a escrever que a independência do Brasil fora “uma emancipação feita com livros” e que “o Brasil nasceu independente e já com sua Biblioteca[13]. E, podemos acrescentar, já com os seus Museus de Belas Artes e Ciência, ambas tributáveis a um monarca que transferira a sua corte para os trópicos.

No Brasil, a acção do Regente e depois Rei, destacou-se, não só nas profundas mudanças na organização social e política daquele Reino, provocadas pela instalação da máquina administrativa do Estado, como, de igual modo, no campo cultural, assumiu contornos estruturais, pois que incidiu na criação de instituições fundadoras de um Estado moderno e autónomo.

Talvez por essa razão foram bem mais generosos os historiadores brasileiros do que os portugueses, na apreciação da actividade daquele monarca, justificando a afirmação de Zuzana Paternostro ter sido D. João “grande incentivador das artes no Brasil”[14]. Ou, como escreve Anaildo B. Baraçal no seu texto sobre os núcleos formadores do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, no qual releva a colecção pessoal do rei, em jeito de conclusão que “treinado na redução caricaturada de D. João como governante e pessoa”, os resultados da investigação lhe tinham trazido “uma sensação de bem estar e de acerto de contas com os detractores joaninos”, considerando o seu papel de “agente do seu tempo, ativo e sabedor da conciliação entre valores e gloria passada e a linguagem contemporânea de os atualizar e exprimir”[15], reafirmando o que cerca de um século atrás escrevera  Oliveira Lima (1867-1928) sobre D. João que “as suas faltas não o teriam afinal impedido de deixar uma obra”, ou de que “nem a sua obra, sujeita a análise, difere extraordinariamente da que emanaria de um reformador nato” [16].

Confirmando estes testemunhos de autores brasileiros que a leitura sobre o reinado de D. João, tanto de há um século, como na actualidade, se continua a fazer em dois territórios geográficos distintos, sendo a historiografia brasileira bem mais benévola e generosa do que a portuguesa na apreciação do legado do último rei absolutista português. 

Na Biblioteca da Ajuda diversos testemunhos documentais ilustram a visão que sobre o monarca tiveram alguns artistas e autores, seus contemporâneos, nas dedicatórias que lhe deixaram.

Em 1803, Belchior Curvo Semedo (1766-1838), poeta e árcade, co-fundador do movimento literário Nova Arcádia, em 1790[17], oferece a “Dom João Príncipe Regente de Portugal” as suas Composições Poéticas editadas em dois volumes. Na dedicatória com que abre a publicação enaltece o papel protector do então Príncipe Regente - “A escolha de hum Mecenas he indispensável a todos os que publicão as suas composições, o nome Protector serve de Egide contra as hervadas frechas da detracção, e da Inveja, e quem mais digno, do que hum Príncipe, e que Príncipe mais digno do que V.A.R. se deve eleger para abrigar, e proteger os mal formados adejos de huma acanhada Musa (…)”[18].

José da Cunha Taborda, pintor régio, professor e tradutor, na sua obra Regras da Arte da Pintura (…)[19], editada em 1815, no qual à tradução da obra de Michael Angelo Brunetti, acrescentou o primeiro dicionário de pintores nacionais e um glossário[20], depois de mencionar as princesas pintoras amadoras da corte de D. Maria I, refere as “esperanças mui grandes, e altamente fundadas” de que tinha a Arte de granjear “respeito”, pela “proteção de um Príncipe virtuoso, sabio e amante das Bellas Artes” e que esse seria o “meio affortunado, com que crescem as Sciencias, com que se augmentão as Artes”[21] que o mesmo testemunhara “em nossos mesmos dias”, como acrescenta.

Nem uma década depois, um outro pintor régio que foi, de igual modo, dos primeiros historiadores da arte em Portugal, isto é, Cyrillo Volkmar Machado (1748-1823), na sua Collecção de Memorias relativas às vidas dos pintores, e escultores, architectos, e gravadores portuguezes (…), obra com que pretendeu colmatar, “o vácuo que se acha na história geral da Arte”, pelo facto de “nenhum escriptor tem [sic] falado atégora da Escola Portuguesa” enaltece o papel de, “ElRei o Senhor D. João VI” por ter-se “dignado de conceder ás bellas Artes, o que ellas exigem, e requerem dos Monarchas, que he Real Munifcencia, e Protecção. Nenhum Monarcha dispende talvez com ellas tanto como o nosso” [22]. Mesmo reconhecendo quanto os artistas viviam dependentes do mecenato quer régio, quer da côrte, não deixam de ser apontamentos benevolentes sobre a acção do monarca.





Collecção de Memorias relativas às vidas dos pintores, e escultores, architectos, e gravadores portuguezes (…) /, Cyrillo Volkmar Machado, Lisboa, 1823.

Super libros armas reais de Portugal e Brasil

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Alguns outros testemunhos poderiam ser aqui chamados à colação para demonstrar que, para além dos já mencionados dois continentes geográficos no que respeita ao julgamento da figura e obra de D. João VI, existe, de igual modo, um fosso na apreciação dos que com o Príncipe e Rei conviveram e os que décadas depois escreveram sobre o soberano, muitas das vezes sem citação de fontes ou documentos que sustentem as suas teses, tão depreciativas, que os contemporâneos não corroboram, pois parece ter havido um consenso sobre a união entre o monarca e os seus súbditos, ou nas palavras de Oliveira Lima, “na íntima correspondência que logo se estabeleceu entre a sua personalidade e o meio”, no que respeita a vivência brasileira.

É ainda o historiador brasileiro a definir o tipo de monarquia que o Regente criara no novo mundo, como “uma monarquia híbrida, misto de absolutismo e de democracia: absolutista dos princípios, temperado pela brandura e bondade do príncipe, e democracia das maneiras, corrigindo o abandono bonacheirão pela altivez instintiva do soberano”. Por fim, deixa o desabafo mais candente – “Culpar D. João VI de não haver sido mais do que um monarca bem intencionado e tachar de modesta a sua obra reformadora, seriam duas graves injustiças de que os brasileiros não podem assumir a responsabilidade”. Um dos mais fracos soberanos da Europa fora, afinal, “o único que escapou às humilhações pessoais por que fez Napoleão passar os representantes do direito divino”, dos Bourbons de Espanha e de Itália, ao “Rei da Prússia, expulso dos seus estados; o César austríaco, compelido a implorar a paz e a conceder ao aventureiro corso a mão de sua filha” [23].

Afinal, de um lado e do outro do Atlântico, por entre inúmeras contrariedades e atribulações, D. João o rei que foi absoluto e constitucional, que sempre procurou o consenso e a mediação entre mundivisões distintas, acabaria por deixar obra perene e duradoura nas instituições que criou e protegeu.

 MMB


[1] MARTINS, J. P. Oliveira, História de Portugal, Lisboa, 1887.

[2] LIMA, M. Oliveira, D. João VI no Brasil, ACD Editores, s/ data.

[3] LIMA, M. Oliveira, D. João VI no Brasil, ACD Editores, s/ data, p. 21.

[4] PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores, “D. João VI”, Círculo de Leitores, 2006, pp. 12, 23.

[5] PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores, D. João VI O Clemente, Círculo de Leitores, 2006, pp. 214-215.

[6] LIMA, M. Oliveira, D. João VI no Brasil, ACD Editores, s/ data, p. 49.

[7] ANTT, Casa Real 2979 (74), Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4162359. Consulta em 13.05.2022.

[8] PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores, D. João VI O Clemente, Círculo de Leitores, 2006, p. 214.

[9] PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores, D. João VI O Clemente, Círculo de Leitores, 2006, p. 38.

[10] TEIXEIRA; José Monterroso, José da Costa Silva (1747-1819) e a receção do Neoclassicismo em Portugal: a clivagem de discurso e a prática arquitectónica, tese de doutoramento. Repositório Camões, UAL, 2012. Disponível em: https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/305/1/Volume%20I.pdf. Consulta em 11.05.2022.

[11] MOURA, Yara, Coleção D. João VI, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 2008, pág. 19. Ver ainda: http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/243-academia-imperial-de-belas-artes. Consulta em 16.05.2022.

[12] Estatutos da Imperial Academia e Escola das Bellas Artes, 1820. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Academia_Imperial_de_Belas_Artes#/media/Ficheiro:00_-_Estatutos_da_Imperial_Academia_e_Escola_de_Bellas_Artes,_estabelecida_no_Rio_de_Janeiro_por_decreto_de_23_de_novembro_de_1820.tif. Consulta em 16.05.2022.

 [13] SCHWARCZ, Lilia Moritz, 2007, pág. 418.

[14] PATERNOSTRO, Zuzana, Pintura Italiana Anterior ao Século XIX no Museu Nacional de Belas Artes, Catálogo Raisonné, Tomo I, coorden. Luiz Marques, Instituto Brasileiro do Património, 1992.

[15] BARAÇAL, Anaildo, “Pertence a S.A.Real : 2,4,8,10”, in Anais do VIII Seminário do Museu D. João VI, IV Colóquio Internacional Colecções de Arte em Portugal e Brasil Nos Séculos XIX e XX Arte e seus Lugares: Coleções em Espaços Reais, EBA/UFRJ, 2017, pág. 182, Disponível em: https://entresseculos.files.wordpress.com/2018/01/anais_versc3a3o-3_2018.pdf. Consulta em 01.09.2020.

[16] PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores, 2006, pp. 25 e 57.

[17] Disponível em: https://www.escritas.org/pt/bio/belchior-manuel-curvo-semedo. Consulta em 13.05.2022.

[18] SEMEDO, Belchior Manoel Curvo, Composições Poeticas, Regia Oficina Typografica, 1803. BA 68-II-40 e 41.

[19] Disponível em: https://purl.pt/6251/1/index.html#/7/html. Consulta em 17.05.2022.

[21] TABORDA, José da Cunha, Regras da Arte da Pintura, com breves reflexões críticas (…), Impressão Régia, 1815, p. 249. BA 39-V-52.

[22] MACHADO, Cyrillo Volkmar, Collecção de Memorias relativas às vidas dos pintores, e escultores, architectos, e gravadores portuguezes (…), Lisboa, 1823, pp.6 e 38. BA 22-VIII-16.

[23] LIMA, M. Oliveira, D. João VI no Brasil, ACD Editores, s/ data, p.56, 59 e 564.

[24] Ribeiro, José Silvestre, Apontamentos Históricos sobre Bibliotecas Portuguesas, Universidade de Coimbra, 1914.

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