1794: o incêndio da Real Barraca, "desvelos" e "providencias" dos bibliotecários da Livraria Régia

A Gazeta de Lisboa, no seu número 45, suplemento XLV, datada de 14 de Novembro de 1794, dava notícia do incêndio que ocorrera no Real Palácio da Ajuda, no dia 10 daquele mesmo mês. Lavrara o mesmo “com tal rapidez” que “a pezar [sic] das maiores diligencias” não fora possível “impedir que ardesse toda a parte do Palacio que fica ao Nascente”, esclarecendo o redactor, ter resultado “daqui huma perda muito consideravel, sem embargo de se terem salvado muitos dos móveis”[1].

GALLI BIBIENA, Giovanni Carlo, 1717-1760. [Planta da Real Barraca] [entre 1755 e ca 1760?], desenho: tinta da china e aguadas. Dimensões 131x72,5 cm. [aqui]

À sucinta notícia sucedia, no número seguinte, datado do dia 15, uma informação mais detalhada, e na qual se destacava que do estrago inevitável que se fizera no Paço velho, escapara “com admiração geral, toda a Real Livraria”, “sucesso feliz” que se ficara a dever ao “desvelo e acertadas providências do R. Doutor Feliciano Marques Perdigão”, seu dedicado bibliotecário.

Escrevia Francisco da Cunha Leão que “Poucas bibliotecas sofreram destruição e história tão turbulenta como a Biblioteca da Ajuda”[2]. Se as perdas com o terramoto de 1755 tinham sido incomensuráveis, entre outras, para a colecção régia de livros, o incêndio de 1794 poupara-a. No entanto, a chegada das tropas napoleónicas em 1807 e o embarque da Família Real para o Brasil, determina um novo capítulo na sua atribulada história. Encaixotada com as preciosidades régias partiria rumo ao Novo Mundo, constituindo doravante o núcleo fundador da Biblioteca do Rio de Janeiro.

Relação dos caixotes com livros pertencentes às Reais Bibliotecas embarcados para a corte do Rio de Janeiro em 25/02/1809[3].

As plantas que a BN guarda daquele que era o Paço Velho da Ajuda mostra-nos, com nitidez os espaços que a Real Livraria (n.º 23) ocupava naquele complexo habitacional. Salvara-se do incêndio porque, contrariamente ao restante edificado, construído em tabique de madeira, fora, sabiamente, erguido em alvenaria de pedra e cal, tal como o espaço anexo, do “Tizouro”, de onde, eventualmente, se salvariam alguns moveis[4].

 

O incêndio de Novembro de 1794 apagou grande parte do importante testemunho da vivência da corte do rei D. José I e da rainha D. Maria I. Contudo, apesar da sua “aparência mesquinha e inusitada para uma residência regia”, a “Real Barraca” encerrava um significativo espolio de artes decorativas”[5], às quais devemos juntar as preciosidades biblioteconómicas guardadas na sua Livraria, que na planta surge assinalada com o nº 23.

De todos estes incidentes se reergueria, no regresso da Família Real ao continente europeu, uma “nova” Biblioteca, mediante compras, incorporações de fundos monásticos, doações de mestres régios e bibliófilos, rainhas e princesas, políticos banidos e exilados[6]. 

 






Cancioneiro da Ajuda, proveniente do Colégio dos Nobres, cuja livraria foi, em grande parte, incorporado na Real Biblioteca da Ajuda, após a extinção daquela instituição de ensino[7].



De entre as aquisições efectuadas com o objectivo de suprir as perdas causadas pelo terramoto de 1755, na Real livraria, destaca-se a da livraria do Conde de Redondo, pela raridade de alguns dos espécimenes que integrava. Destacamos alguns dos manuscritos daquela colecção, e que tendo rumado para o Brasil, regressariam a Ajuda, após 1821, com o conjunto dos manuscritos da livraria régia.



 







Foral da Vila do Touro, anteriormente pertencente à Livraria do Conde de Redondo. BA 52-XIII-27


Apesar de todas as vicissitudes pelas quais passou a Livraria régia foi sistematicamente reerguida e as suas perdas colmatadas. Como deixou escrito um dos seus últimos directores, a história da Biblioteca da Ajuda “(…) longa de pequenas e grandes tragédias, de trabalho insano, surdo e dedicado de gerações de bibliotecários, arquivistas e historiadores, de dezenas de milhares de livros perdidos, recuperados e emigrados (…)”[8] detém, na actualidade, um acervo de importância histórica e patrimonial de valor incalculável.

 MMB@BA


[1] BA 170-I-172/69. Disponível em: https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/GazetadeLisboa/1749/Novembro/Novembro_item1/index.html

[2] Cunha Leão, Francisco, “A Biblioteca da Ajuda: das origens à actualidade”, Cadernos BAD, Lisboa, 1992, p. 196.

[3] Registo do Expediente do Particular, ANTT CR 2979, fl. 36v.

[4] Bastos, Celina, A Real Barraca no sitio de Nossa Senhora da Ajudo e as encomendas da Casa Real: alguns elementos para o seu estudo”, Revista de Artes Decorativas, Universidade Católica, 2007, pp.193-228. Disponível: em https://revistas.ucp.pt/index.php/revistaartesdecorativas/issue/view/977.

[6] Barros, Mafalda de Magalhães, “Banidos os proprietários das livrarias mas não os livros”, linha Editorial Estudos, Palácio Nacional da Ajuda, 2024. Disponível em: https://www.palacioajuda.gov.pt/paginas/69c4ddee-banidos-os-proprietarios-das-livrarias-mas-nao-os-livros

[7] Idem, Idem.

[8] Cunha Leão, Francisco, obra cit., 1992, p.