No dia da Mulher evocamos uma figura feminina que se destacou no meio cultural português do seu tempo:

    D. Leonor de Almeida (1750-1839), Condessa de Oyenhausen, 4ª Marquesa de Alorna


D. Leonor de Almeida, futura 4ª Marquesa de Alorna, dama detentora de vasta cultura, que apurara nos tempos de cativeiro, por 14 anos, no Convento de Chelas[1], viveu todos os paradoxos e contradições de um tempo no qual era enaltecida a instrução feminina, pelos filósofos da Ilustração, mas que, em simultâneo, a sociedade condicionava a intervenção das mulheres no espaço público.

J.J. Rousseau (1712-1778) filósofo da ilustração que imprimira a sua visão progressista para um modelo de sociedade, igualitária, n´O Contrato Social, ou no Discours sur l´Origine, et les fondements de l´Inegalité des Hommes, entre outras obras, deixara, porém, na sua novela pedagógica, Emile ou de l´Education, um papel secundário para a personagem feminina, e não o da mulher na plenitude da sua afirmação individual. No obstante ser de leitura “suprimida”, pela Real Mesa Censória, as damas liam as obras do filósofo, como demonstra a correspondência de D. Teresa de MelloBreyner (1739-179?), (Tirse) outra mulher ilustrada da corte mariana, com D. Leonor, que, na resposta às cartas da amiga, apelida o genebrino de “Heroe desprezador de mulheres”, pela “pouca onra que elle faz ao nosso sexo”[2].

Este fora um período durante o qual a instrução feminina se difundira, essencialmente entre as elites, persistindo, no entanto, um grande desconhecimento sobre a criação literária de mulheres escritoras, pois o recurso à publicação anónima, ou debaixo de siglas, num compromisso entre o anonimato e a afirmação da identidade, foi um subterfúgio utilizado, já que, “ser autora de trabalho remunerado pareceria imodesto”[3], falta que nenhuma dama de sociedade quereria cometer.

Era nesse contexto complexo de fim do Antigo Regime que D. Leonor viveu. Sabemos que algumas mulheres liam, tinham as suas bibliotecas ou livrarias, e escreviam, porém, as suas obras, não eram editadas em nome próprio.

No que respeita a obra de D. Leonor diversas foram as fórmulas utilizadas para “esconder” a sua autora, apenas reconhecível entre o grupo restrito em que se movia. A própria comenta em carta, que dirige de Londres a sua sobrinha, em 1806, que a filha “Juliana também escreve duas regras para me pedir licença para imprimir as minhas obras!!! Como se isto me bastasse e que essa espécie de vaidade coubesse ainda no meu coração. Nunca escrevi com intenção d´imprimir (…)”[4].

A modéstia e o recato eram convenientes a uma dama se não quisesse ser acusada de pedantaria ou presunção, pecado maior para uma mulher. Escrever e publicar em nome próprio era, sobretudo, apanágio masculino, D. Leonor não escapou ao ar do tempo.

Só após a morte da já então Marquesa de Alorna as suas filhas publicariam, em 1844, a produção literária de sua mãe, quer a poesia e a prosa, quer as traduções, às quais a escritora se dedicara em diversas épocas (BA. 122-III-41 a 46).

As primeiras obras, impressas, de D. Leonor foram dedicadas à tradução, então considerada uma actividade “legítima”, para as damas, pois era uma tarefa que não significava a exposição pública de criatividade, ou individualidade, já que se apresentavam, quase sempre, por autora anónima ou, por vezes, debaixo das iniciais do seu pseudónimo artístico. Não deixavam, porém, de indiciar a presença de alguém que dominava diversos idiomas, desde logo o latim, bem como o inglês, o francês, e conhecimentos da língua alemã. Neste capítulo, destacam-se, seguindo Vanda Anastácio as traduções de Chateaubriand

 



De Buonaparte e dos Bourbons, de 1814 (BA. 154-II-10, nº 17), da Paráfrase dos Salmos, em duas partes, em 1817 e em 1833, ou o Ensaio sobre a indiferença em matéria de religião, de Lamennais, em 1820, e ainda as obras de caracter didático-científico como As Recreações Botânicas, ou a Arte Poética de Horácio e do Essay on Criticism de Pope[5].

Oberon, poema de Wieland, Tomo I, Paris, 1802. 
A obra apresenta-se sem autoria da tradução, os quatro primeiros cantos que traduziu do alemão. BA. 63-III-61

Parafrase a varios psalmos. - Lisboa : na Impressão Regia, 1817. - 44 p. ; 8º (16 cm). - Por D. Leonor de Almeida Portugal segundo a bibliografia. - Marca de impressor: Impressão Régia , no rosto. BA.154-II-6, nº 7 


Alorna, Marquesa de, 1750-1839

Paraphrase dos Salmos em vulgar, Lisboa, 1833
Prova de que Alcipe domina a língua latina
BA. 61-IV-55









A tradução da obra de J.J. Rousseau Cartas sobre os elementos de Botânica, que localizamos na BA, “traduzidas da língua inglesa por huma senhora desta corte”, conforme surge na folha de rosto, faz-nos suspeitar da presença de D. Leonor, sem que o possamos afirmar com plenitude de segurança. Não deixamos, no entanto, de a apresentar, pois trata-se da tradução de obra interdita, de um autor que D. Leonor lera, dedicada a uma matéria que tanto prezava, como comprovam as suas Recreações Botânicas e quem senão Alcipe estaria em condição de o fazer na corte portuguesa?

Cartas sobre os elementos de Botanica, por J. J. Rousseau de Thomaz Martyn (quarta edição) traduzidas da língua inglesa por huma Senhora desta corte, Lisboa, na Typographia Chalcografica, Typoplastica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801. BA 33-IV-45.

A obra completa de D. Leonor de Almeida seria editada postumamente por suas filhas, cuja recompilação nos ajuda agora a conhecer um conjunto significativo de obra de sua autoria bem como as traduções a que se dedicou, sendo, no entanto, provável que nem tudo quanto Alcipe escreveu esteja contemplado naqueles volumes, pois muita da produção poética passava manuscrita nos salões literários que frequentava.

O Marquês de Bombelles, Embaixador de França, entre 1786-1788, deixa-lhe os maiores elogios no Diário[6] que redige da sua passagem por Portugal, levantando um pouco o véu sobre o grau de desembaraço e cultura das damas que frequentavam os salões aristocráticos tardo-setecentistas. Sobre “Mme d´Oyenhausen” deixa escrito que durante o jantar em sua casa “elle s´est montée au ton de la poésie et nous a fait grand plaisir en improvisant dans une langue qui n´est la sienne. Elle nous a aussi récité des vers d´une grande beauté (…)”.

Sabendo quanto eram parcos em elogios os visitantes estrangeiros sobre o grau de cultura das elites em Portugal, este testemunho não deixa de ser eloquente sobre os méritos que recaiam sobre a escritora que agora quisemos evocar.

 M.M.B.@BA


[1] MARQUEZ de ÁVILA E BOLAMA, A Marqueza d´Alorna, Lisboa, 1916, p. 21.

[2] BELLO VÁSQUEZ, Raquel, Uma certa ambiçaõ de gloria. Trajectória, redes e estratégias de Teresa de Mello Breyner nos campos intelectual e do poder em Portugal (1770-1798), tese de Doutoramento, Universidade de Santiago de Compostela, Janeiro, 2005. Disponível aqui

[3] LEHNER, Ulrich, Women, Enlightenment and Catholicism, Routledge, 2018, p. 2.

[4] ANASTÁCIO, Vanda, “Cherchez la femme (À propôs d´une forme de sociabilité litteraire à Lisbonne à la fin du XVIIIème siècle)”. Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XLIX, Centre Culturel C. Gulbenkian, 2005, pp. 93-101.

[5] Ver ANASTÁCIO, VANDA, “Mulheres varonis e interesses domésticos” (Reflexões acerca do discurso produzido pela História Literária acerca das mulheres escritoras da viragem do século XVIII para o século XIX), Cartographies, Lisboa, 2005, pp. 537-556.

[6] BOMBELLES, Marquis de, Journal d´un Ambassadeur de France au Portugal 1786-1788, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris, 1979.